O historiador e cientista político Boris Fausto, de 90 anos, acompanha o desenrolar da crise sanitária - já tomou a primeira dose da vacina - e diz achar impossível que a cúpula do Exército não se sinta incomodada com a forma como o general Eduardo Pazuello conduz a pasta da Saúde. Após o episódio envolvendo as memórias do general Villas Bôas, ele aponta, ao Estadão, para um fato que o intriga na relação dos militares com o governo: a inexistência de uma crise militar. Para ele, é como se a maioria dissesse: "Bem ou mal esse homem nos convém."
Qual o papel das Forças Armadas no governo Bolsonaro?
Vejo um fato: não temos uma crise militar. Aparecem crises de vários lados, mas impressiona que não haja uma crise militar. Evidente que deve haver descontentamentos. Posso estar sendo ingênuo, mas acho impossível que uma pessoa da cúpula das Forças Armadas não esteja incomodada com a forma como o general Pazuello está conduzindo a Saúde. Acho que deve haver insatisfação, mas insatisfação surda. De vez em quando transparece de forma indireta, mas não há ninguém que diga: "Isso não é possível". Nem mesmo no pessoal da reserva aparece. Vejo apenas o general Santos Cruz, mas pode estar me faltando algo. Tem um aparelho administrativo burocrático militar muito bem assentado com todos os direitos, acréscimos nos vencimentos, e isso é confortável. Não há grande admiração por Bolsonaro na cúpula hierárquica. Precisaria ser um capitão de muitas qualidades para se sobrepor a generais, o que não é o caso. Mas, talvez, se pense: "Esse homem bem ou mal nos convém. Vamos querer o quê? Tirá-lo? Vamos apostar no quê?" Já nos quadros médios para baixo, Bolsonaro é "o nosso homem". Essa força do aparelho pesa na continuidade e na dificuldade de levar adiante o processo democrático.
Como analisa o tuíte feito pelo general Villas Bôas às vésperas do julgamento do HC de Lula?
O tuíte foi um momento esclarecedor, sem dúvida. Deixou visível essa pressão da cúpula militar sobre o Judiciário. E veio de uma pessoa tida, até então, como um democrata.
Qual é o impacto da pandemia no governo Bolsonaro?
O peso da pandemia é muito forte. E foi tratada com muita indiferença e irresponsabilidade. Isso tudo leva quase que a perda do controle do enfrentamento da crise sanitária. Teríamos milhares de mortos? Teríamos. Teríamos essa quantidade? Duvido. E, sobretudo, não tivemos um polo organizador que representasse a Nação: aqui está o Executivo, com seus ministros, que vai enfrentar com as armas da ciência esse grande flagelo. Quando não tem isso, lança-se a dúvida, faz-se aglomerações, é um retumbante fracasso.
Será possível melhorar as condições sanitárias e políticas do País até 2022?
São duas coisas diferentes, mas relacionadas. Sanitárias, vejo possibilidade. Há atraso, mas não descalabro total. Já a situação política, não vejo como haver melhora, até porque temos um marco que vai produzir faíscas o tempo todo, que, obviamente, é preocupação de quem entra no poder, mas que não pode ser logo no primeiro dia: a reeleição.
A natureza desse governo não muda com o apoio do Centrão?
A natureza desse governo não vai mudar. Só houve um ajustamento, na hora que soou o alarme do impeachment, mas ele não mudou em seus objetivos. Esses permanecessem de pé. Digo que mudou, por exemplo, o acordo com o Centrão, que é uma novidade. O quanto dura? Não sei. Bolsonaro está longe de não ser esperto. Ele se aliou a todas as ratazanas conhecidas e às pouco conhecidas. Quem dita as cartas nesse jogo? Vamos ver. Mas houve uma mudança de rumo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.