O filme Motel Destino (2024) tem um dos mais elogiados desempenhos na carreira de Fábio Assunção, ator paulistano de 53 anos visto nas novelas O Rei do Gado (1996-1997) e Celebridade (2003-2004), nos longas-metragens Duas Vezes com Helena (2002), Bellini e a Esfinge (2002) e Bellini e o Demônio (2008) e nas séries Os Maias (2001), Mad Maria (2005), Dalva e Herivelto: Uma Canção de Amor (2011) _ pela qual concorreu ao Emmy Internacional _, Entre Tapas & Beijos (2011-2014), Onde Está meu Coração (2020) e Fim (2023).
Dirigido por Karim Aïnouz, o título estreou na quinta-feira (22) em cinco cinemas de Porto Alegre: CineBancários, Cineflix Total, Espaço Bourbon Country, GNC Praia de Belas e Sala Eduardo Hirtz. O cineasta de Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006) e A Vida Invisível (2019) transpõe um enredo típico do noir estadunidense para o litoral cearense: a chegada de um jovem fugido do crime organizado, Heraldo (papel de Iago Xavier), sacode o cotidiano do motel de beira da estrada administrado pelo casal Elias (Fábio Assunção) e Dayana (Nataly Rocha).
Na entrevista a seguir, concedida no 52º Festival de Cinema de Gramado, onde Motel Destino abriu a programação, fora de competição, Assunção fala sobre a construção do seu personagem e sobre como o filme serve de microcosmo da sociedade brasileira.
Você pode falar sobre a construção do seu personagem, que é bastante ambíguo? Ora o Elias é ameaçador, ora é patético, ora é um cara decadente, ora é um cara vigoroso.
Cada personagem tem uma história, né? Isso é fato. Eu já tive personagem que saquei na prova do figurino. Mas o Elias demorou um pouco para eu entender quem era, porque eu tenho uma tendência a não ser maniqueísta. Ele pode ser um cara abusivo, de relação tóxica e tal, ele pode ser um cara que humilha, um cara do Rio de Janeiro dentro do contexto cearense, todos esses degraus sociais estão ali presentes, mas eu fico buscando: cadê a alma desse cara? Eu sempre acho que o recém-nascido não é vilão, sabe? Então eu fico pensando quais foram as escolhas que essa pessoa fez, as decisões que foram construindo essa personalidade, que muitas vezes não são decisões tão livres. A gente, às vezes, toma decisões amarrado em outras decisões, e uma decisão vai puxando a outra, então sempre fico procurando a humanidade das personagens, tentando ver o que ele tem, que todos nós temos. Eu tive dificuldade, porque o filme também é muito econômico nas presenças, então não me dava muita margem para construir outras coisas. Mas aí o que eu fiz? Eu dividi o filme em 12 movimentos, e para cada movimento, para cada cena desse movimento, eu fazia uma playlist, eu tentava colocar o que aquele cara estava pensando, qual era a motivação dele naquela cena. Quando eu chegava no set, eu ficava ouvindo música, eu ficava trazendo aquela energia.
Você pode dar um exemplo de música que tem em uma dessas playlists?
Eu teria que te mostrar, porque eu não faço... Mas assim, não é o óbvio. Por exemplo, se é uma cena de forró, não é um forró que toca. Mas eu posso botar uma música que me traga alegria, sabe? Tipo California Dreamin, alguma coisa que me dê um astral que eu relacione com o que eu acho que ele vai estar sentindo no forró, e tentar trazer a energia, não de uma forma literal. E isso é 10 % do trabalho, porque daí chega no set e, de fato, tem esse contágio todo, aí tem o carinho dos colegas, então também eu tenho muita escuta em cena, o que o Iago está trazendo, o que a Nataly está trazendo, o que o Karim está pedindo, onde estão as câmeras. "Que plano é esse?". Acho que é um grande quebra-cabeças, e o prazer vem daí, dessa construção.
(ATENÇÃO: HAVERÁ SPOILER NO FIM DA PERGUNTA.) Você disse que o filme é econômico nas presenças, e o seu personagem é de poucos diálogos, ou melhor, ele não fala muito o que ele quer. Você também falou sobre o que um personagem tem de humanidade, e eu vejo o Elias como um cara reprimido sexualmente, que não consegue dizer com todas as letras que ele deseja o personagem do Iago Xavier. Mas o corpo do Elias grita. (ALERTA SOBRE SPOILERS). E aí tem a cena em que o Elias descobre, via vídeo, que a Dayana e o Heraldo estão transando. A reação do Elias é ambígua: parece estar furioso, mas também excitado.
É uma questão de você estar aberto para deixar essas energias transitando. Essa cena, por exemplo, eu poderia ter feito ela chutando tudo, quebrando tudo. Mas é tão bonito esse processo, sabe? O Karim estava ali do meu lado, dizendo "agora vamos fazer um pouco mais assim, um pouco mais assim". Eu gosto de reações que surpreendam. Procuro não ir pela minha primeira leitura. Sempre desconfio da minha primeira leitura, isso é até um clichê, muita gente já falou isso, mas é fato: a sua primeira leitura é só uma primeira leitura. O fazer vai te dando outras camadas de leitura. Daqui a pouco você está fazendo uma outra coisa que você nem tinha pensado. Por outro lado, o que você destacou, eu gosto de personagens silenciosos. Se você pegar novelas, o personagem está sempre falando o que está fazendo. E por quê? Porque muita gente vê novela fazendo outras coisas. Então, acho que no cinema e no teatro, quem está vendo é porque está vendo, né? Dificilmente você vai ter alguém vendo uma peça e passando um zap. É diferente. Acho que o ator em cena contando uma história, mas fazendo outra, isso é interessante. Até houve uma versão dessa cena em que eu olhava e sentia prazer. O negócio é tentar ter um olhar meio subversivo em relação ao que se espera daquilo. Experimentar. Experimentar. Às vezes, a primeira leitura é a melhor. E o silêncio, eu acho que ele conta mais do que eu ficar dizendo o que eu estou sentindo.
Na apresentação do filme no Palácio dos Festivais, em Gramado, você disse que Motel Destino também é um retrato do Brasil. Como eu sei que você estuda Sociologia, gostaria que falasse da relação do filme com a sociedade brasileira.
Acho que é um recorte de um Brasil. Esse cara vindo do Sudeste, ele sendo esse homem branco, e a relação que ele tem com a mulher cearense, isso é um clássico. Eu, nos anos 70, quando eu estava na escola, quando alguém se vestia de alguma forma diferente, era chamado de baiano. "Pô, esse cara é mó baiano, olha aí que roupa errada." Essa estrutura de ver o Nordeste como algo menor, levando em consideração as questões do capital, da riqueza e da pobreza, mas o Nordeste é tão rico culturalmente... O cearense, assim como o nordestino, ele é estigmatizado. E como o meu personagem é um ex-policial, também tem essa visão do preto criminoso, do preto pobre. Ele diz "menos um CPF", que é uma gíria muito usada pelas milícias. Acho que a sociologia do filme está nisso, nesse desprezo, nesse abandono. Tem também essa questão de muitos nordestinos terem ido para o Sudeste em busca de trabalho e que servem de mão de obra mais braçal e menos remunerada. O que vai ser do Heraldo, quando ele for para São Paulo? Dá para você imaginar, não é?
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