Estreia nesta sexta-feira (23) na plataforma de streaming Reserva Imovision (que pode ser acessada via Amazon Prime Video) Testamento (Testament, 2023), do canadense Denys Arcand, diretor de um filme que, duas décadas atrás, virou fenômeno de público nos cinemas de Porto Alegre, em especial no saudoso Guion Center, na Cidade Baixa.
Ao contrário do habitual, a bilheteria de As Invasões Bárbaras (2003) registrou tendência de crescimento a cada semana de exibição, graças à propaganda boca-a-boca. Embalada por esse sucesso, a Sala Eduardo Hirtz chegou a promover um ciclo com três obras anteriores de Arcand: O Declínio do Império Americano (1986), Jesus de Montreal (1989) e Amor e Restos Humanos (1993).
As Invasões Bárbaras faz um réquiem da geração dos anos 1960, personificada no professor Rémy (papel de Rémy Girard), socialista e mulherengo, agora morrendo de câncer em um hospital público. Em torno do doente, reúnem-se sua mulher, o filho analista de finanças, Sébastien, com quem tem desavenças, antigos amigos e ex-amantes. Parece um melodrama, mas Arcand atenua com humor, cinismo e crítica. Ganhou o Oscar de melhor filme internacional e concorreu ao prêmio de roteiro original.
Testamento segue a cartilha de As Invasões Bárbaras. Novamente, temos Rémy Girard na pele do protagonista, o arquivista aposentado Jean-Michel Bouchard, que mora em um lar para idosos. Novamente, esse personagem lida com a finitude — "Eu adoro caminhar em cemitérios", ele diz na abertura. "São lugares tranquilos onde posso pensar em todos esses mortos que logo encontrarei." Novamente, Arcand, hoje com 83 anos, faz um réquiem das utopias de sua geração — se no filme de 2003 o professor Rémy lamenta descobrir que o filho faz o oposto do que ele e seus pares idealizaram para o mundo, agora o cineasta canadense condena o que ele chama de "posturas muito moralistas" dos jovens, como contou em entrevista à jornalista Mariana Peixoto, do Estado de Minas. Novamente, a amargura coexiste com com a ironia, o tom intimista se alterna com ataques a coletivos.
O conflito central de Testamento é deflagrado quando jovens manifestantes acampam em frente à instituição onde vive Bouchard. Eles pedem a remoção de uma pintura do artista Charles-François Daubigny (1817-1878), um mural considerado racista e afrontoso às chamadas Primeiras Nações. Retrata o encontro do explorador francês Jacques Cartier — pioneiro da colonização do Canadá, no século 16 — com um grupo de indígenas seminus.
Está claro o alvo de Denys Arcand. Ou melhor, os alvos. Como se fosse uma metralhadora giratória, Testamento atira contra o revisionismo histórico, a reparação cultural, o politicamente correto, os governantes, os jornalistas, os movimentos identitários, as feministas — vide uma das sequências iniciais, uma cerimônia de premiação onde autoras de livros como Vaginas em Chamas e Opressão e Vingança são aclamadíssimas e literalmente passam por cima de Bouchard na hora de subirem ao palco. Quando o protagonista é chamado, os aplausos são muito tímidos. Afinal, ali está um homem branco, certamente privilegiado e provavelmente preconceituoso.
Dito assim, parece autocrítica, mas na verdade Arcand, sob a perspectiva de Bouchard, exalta sua superioridade em relação às pessoas e ao mundo, adotando aquela linha "no meu tempo que era bom". Pelo olhar do protagonista, vários dos coadjuvantes são ridicularizados. Sejam os idosos que tentam levar uma vida mais saudável, sejam as jovens brancas e privilegiadas que decidem defender uma minoria étnica.
Como comédia, Testamento pode agradar muito ou desagradar bastante. Uns vão pensar: "Finalmente alguém disse o que penso sobre isso, finalmente alguém desmascarou essa turma". Outros verão como rançoso o humor praticado por Denys Arcand, algo parecido com o que o estadunidense Bill Burr fez em Tiozões (2023), mas com verniz artístico e olhar mais amplo.
É como drama que o filme atinge seus momentos mais altos. Os monólogos de Bouchard traduzem com belas e precisas palavras a desilusão com o estado das coisas e a proximidade da morte: "É uma sensação bem estranha perceber de repente que sua vida agora acabou. Eu costumava me interessar por política, economia, cultura, e às vezes até por esportes. E agora, se Vladimir Putin invade a Ucrânia, fico triste, claro, mas sei que não há nada que eu possa fazer. A Ucrânia é muito longe, e eu sou muito velho".
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