Não poderia ser outra a melhor série para maratonar durante o Carnaval: Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho, documentário em sete episódios do Globoplay que tem como alguns de seus principais personagens os poderosos chefões das escolas de samba do Rio de Janeiro.
A melhor série policial de 2023 mostra como a vida real pode ser mais novelesca do que a ficção — e até mais letal. Assassinatos e tentativas de homicídio pontuam Vale o Escrito. E os tiros, como na expressão característica da loteria clandestina, são quase sempre na cabeça.
Com direção de Fellipe Awi, Ricardo Calil — autor do premiado Cine Marrocos (2018) — e Gian Carlo Bellotti, Vale o Escrito é uma produção do Conversa.doc, núcleo de documentários comandado por Pedro Bial, que assina a supervisão artística e faz a narração (às vezes, descontraída demais). A série demandou três anos de pesquisa, negociações e gravação de entrevistas, como Calil contou em entrevista à Rádio Gaúcha na época da estreia.
— O jogo do bicho tem mais de 130 anos e, desde cedo, foi sofrendo uma série de proibições (suas origens são recuperadas pela combinação do depoimento do historiador Luiz Antonio Simas com imagens de arquivo) — lembrou o diretor. — Para existir dentro da ilegalidade, se organizou como uma máfia.
O espectador acostumado às histórias sobre mafiosos, sejam as verídicas ou as fictícias, vai deparar com semelhanças ou até citações. Para começo de conversa, os bicheiros do Rio estão divididos em cinco grandes famílias — o mesmo número dos clãs de imigrantes e descendentes de italianos que se consolidaram em Nova York nas primeiras décadas do século 20. Temos os Garcia, os Andrade, os Guimarães, os Scafura e os Abraão (cada capítulo é mais centrado em um dos núcleos familiares). Os negócios passam de pai para filho — frise-se o gênero: mulheres não podem ascender, não podem ser donas de pontos de jogo ou máquinas caça-níqueis.
Esse será um obstáculo e tanto para as gêmeas Shanna e Tamara, filhas de Maninho Garcia e netas de Miro Garcia. Para serem de fato herdeiras, elas terão de primeiro se tornarem esposas — de homens inegavelmente ambiciosos (respectivamente, Zé Personal, já morto, e Bernardo Bello, muito vivo). Mas talvez mais importante ainda seja se tornarem aliadas — em um lance digno dos folhetins, Shanna e Tamara se odeiam. Não à toa, sua relação é comparada à de Ruth e Raquel, as personagens interpretadas por Glória Pires na novela Mulheres de Areia (1993).
Por conta das rivalidades, das traições, das reviravoltas, dos filhos sequestrados, dos carros explodidos e das execuções em plena luz do dia, o espelhamento com obras de ficção é inevitável — e por vezes a referência é dada diretamente por um dos entrevistados: o herdeiro dos Guimarães tem a casa decorada por quadros e pôsteres alusivos à trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990), aos filmes Scarface (1983) e Os Bons Companheiros (1990) e ao seriado Família Soprano (1999-2007). E ele diz seguir "os princípios e as doutrinas da máfia: hierarquia, respeito, lealdade, não dedurar".
Miro Garcia, bonitão e esquentado, remete ao personagem de James Caan na saga dos Corleone, Sonny. Alcebíades Garcia, o Bid, é tipo Fredo Corleone (John Cazale), o irmão sem talento e escanteado que à certa altura tenta fazer valer seu sobrenome. Rogério de Andrade é como se fosse o próprio Michael Corleone, tanto pelo poder que conquista a partir do momento em que se torna o capo da família quanto pelo visual: engravatado e com cabelos grisalhos num penteado curto e arrepiado, lembra Al Pacino na terceira parte de O Poderoso Chefão.
Mas não é só a adaptação de Francis Ford Coppola para a trama escrita por Mario Puzo que vem à mente. O octogenário Ailton Guimarães, o Capitão Guimarães, um dos integrantes da chamada Alta Cúpula, permite traçar um paralelo com o Russell Bufalino vivido por Joe Pesci em O Irlandês (2019), um manda-chuva ainda mais perigoso do que os mafiosos irascíveis encarnados pelo ator em Os Bons Companheiros e em Cassino (1995), porque frio, contido, dissimulado — escolhe a dedo as palavras para jamais se comprometer, mas nunca deixa de dar o recado. (Entre os coadjuvantes de Vale o Escrito, merece destaque o delegado da Polícia Civil Vinicius George, que, "com seu jeitão debochado e desiludido", como definiu o jornalista e podcaster Caio Bellandi no X, cunha frases antológicas.)
A exemplo dos mafiosos nova-iorquinos, os contraventores cariocas estão envolvidos com a violência, o crime organizado e a corrupção nos campos da polícia, da política e da Justiça, matam por dinheiro ou por vingança, mas têm uma imagem glamorizada — em vez dos ternos elegantes, aparecem com as cores das escolas de samba das quais viraram patronos. Castor de Andrade ajudou a Mocidade Independente de Padre Miguel a ser campeã de 1979, 1985, 1990, 1991 e 1996. Os Garcia ingressaram em 1985 na Acadêmicos do Salgueiro e, em 1993, interromperam uma sequência de 18 anos sem título. Anísio Abraão ainda é o presidente de honra da Beija-Flor de Nilópolis, terceira maior vencedora dos desfiles na Marquês de Sapucaí.
O Carnaval associa o jogo do bicho à alegria, à sensualidade, ao fortalecimento dos laços comunitários, aos sonhos e às tradições — ao Brasil tipo exportação. No universo de rainhas, porta-bandeiras e ouro do Sambódromo, os bicheiros, por um lado, podem ostentar sua realeza e exercer sua vaidade; por outro, se legitimam como parte da elite cultural e econômica do Rio, quase obtendo um salvo-conduto para os negócios escusos e não raro sangrentos. Por falar em elite, vale observar que praticamente todos os personagens, incluindo os ex-policiais militares Adriano da Nóbrega e Ronnie Lessa (ligados à família Bolsonaro e suspeitos de serem assassinos de aluguel — Lessa é apontado como o autor dos disparos contra a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, em 2018), são brancos. Assim como o jogo do bicho, o racismo estrutural é um símbolo nacional.
Bônus: Doutor Castor
O Globoplay tem outra série documental sobre um bicheiro emérito do Rio: Doutor Castor (2021), centrada em Castor de Andrade (1926-1997) e dirigida por Marco Antônio Araújo.
Como escreveu o jornalista Pedro Venceslau, o carismático banqueiro do jogo do bicho, patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel e cartola do Bangu “simboliza como poucos a tolerância da opinião pública com a moral flexível das autoridades, seja no futebol, na política ou na polícia no Rio de Janeiro”.
Os quatro episódios mostram como Castor foi um homem extremamente violento no controle dos seus territórios, mas, ao mesmo tempo, um mecenas malandro e boa-praça, que era tratado como o rei do Rio — inclusive pela imprensa.
O documentário teve como uma de suas bases o livro Os Porões da Contravenção, de Aloy Jupiara e Chico Otavio, que são entrevistados. Doutor Castor escancara o uso político do Carnaval e também empreende uma viagem ao passado do futebol. Na era de ouro de Castor, quando a compra e venda do passe de jogadores podia se dar em negociações de pontos do bicho, o Bangu chegou a ser vice-campeão brasileiro, em 1985. Como dirigente, Castor era generoso, mas andava sempre armado e estimulou seus capangas a agredir árbitros.