A ironia amarga do título, os personagens gays e a letra carregada de paixão e melancolia do fado português que lhe empresta o nome não deixam dúvida de que Estranha Forma de Vida (Strange Way of Life, 2023) é um filme de Pedro Almodóvar. O que o espectador acostumado ao diretor espanhol pode estranhar são a duração e o idioma: em cartaz a partir desta quinta-feira (14) em três cinemas de Porto Alegre — Espaço Bourbon Country, GNC Moinhos e Sala Paulo Amorim — e estrelado por Ethan Hawke e Pedro Pascal, trata-se de um curta-metragem com 30 minutos e falado em inglês, como foi A Voz Humana (2020). As sessões são mais longas porque incluem uma entrevista de quase uma hora com o cineasta de Tudo Sobre Minha Mãe (1999), ganhador do Oscar de longa internacional e do troféu de melhor direção no Festival de Cannes, e de Fale com Ela (2002), que venceu a categoria de roteiro original na premiação da Academia de Hollywood.
A exemplo de Fale com Ela e de A Flor do meu Segredo (1995), o novo filme traz uma parceria de Almodóvar com Caetano Veloso. Depois de empregar, respectivamente, as gravações do artista brasileiro para a composição mexicana Cucurrucucú Paloma (Tomás Méndez, 1954) e a venezuelana Tonada de Luna Llena (Simón Díaz, 1973), o diretor lança mão de Estranha Forma de Vida (Alfredo Rodrigo Duarte e Amália Rodrigues, 1962), que Caetano cantou para a trilha sonora de Fados (2007), documentário de outro grande cineasta espanhol, Carlos Saura (1932-2023). Na cena de abertura do curta, é sua a voz que escutamos enquanto um jovem vaqueiro, ao violão, entoa os versos do fado popularizado pela portuguesa Amália Rodrigues (1920-1999) e difundido no Brasil por Maria Bethânia: "Foi por vontade de Deus / Que eu vivo nesta ansiedade / Que todos os ais são meus / Que é toda minha a saudade / Foi por vontade de Deus // Que estranha forma de vida / Tem este meu coração / Vives de forma perdida / Quem lhe daria o condão? / Que estranha forma de vida // Coração independente / Coração que não comando / Vives perdido entre a gente / Teimosamente sangrando / Coração independente // E eu não te acompanho mais / Para deixa de bater / Se não sabes onde vais / Porque teimas em correr / Eu não te acompanho mais".
A letra explicita que esta é uma história de amor interrompido, e o título alude à condição de seus personagens principais: é uma estranha forma de vida a do rancheiro Silva (Pedro Pascal, das séries Game of Thrones, The Mandalorian e The Last of Us) e a do xerife Jake (Ethan Hawke, indicado ao Oscar de ator coadjuvante por Dia de Treinamento e Boyhood e ao de roteiro adaptado por Antes do Pôr do Sol e Antes da Meia-Noite). Em um mundo masculinizado como o do Velho Oeste, ambos precisam esconder quem realmente são. Por isso, ficaram 25 anos separados, tempo no qual se casaram com mulheres, tiveram filhos, mas nunca esqueceram daqueles loucos dias no México.
Resposta a "O Segredo de Brokeback Mountain"
Filmado em região desértica de Almería, na Espanha, locação de vários spaghetti westerns, como o clássico Três Homens em Conflito (1966), de Sergio Leone, Estranha Forma de Vida é um raro faroeste gay e uma "resposta" de Pedro Almodóvar a O Segredo de Brokeback Mountain (2005) — a definição é do próprio cineasta. Antes do taiwanês Ang Lee, foi oferecida ao espanhol a direção do triste romance entre o vaqueiro Ennis del Mar e o caubói de rodeio Jack Twist. "Mas nunca acreditei que eles me dariam total liberdade e independência para fazer o que eu queria", disse Almodóvar em entrevistas. "A relação entre esses dois caras é animalesca. Era uma relação física. Para mim, seria impossível ter isso no filme porque era um filme de Hollywood. Você não poderia ter esses dois caras transando o tempo todo."
Não quer dizer que Silva e Jake tenham tórridas cenas de sexo na cidadezinha fictícia de Bitter Creek (em inglês, riacho amargo). Veremos nádegas desnudas e ouviremos diálogos sobre "cheiro de porra", mas Almodóvar prefere focar na ternura — tão estranha entre homens, quanto mais nesse universo árido, como mostrou a diretora neozelandesa Jane Campion em um filme aparentado, Ataque dos Cães (2021).
Como é típico na obra almodovariana, a música foi composta por Alberto Iglesias, e há um cuidado especial com os figurinos — criados por Anthony Vaccarello, diretor criativo da grife Yves St. Laurent, que financiou Estranha Forma de Vida —, por meio dos quais o cineasta faz algumas de suas costumeiras citações (a jaqueta verde usada por Pedro Pascal remete à de James Stewart em E o Sangue Semeou a Terra, lançado por Anthony Mann em 1952). Há outras marcas, como o uso de flashbacks e a presença de elementos do gênero policial. Mas a curta duração cobra seu preço. Sente-se falta de suas também habituais digressões e de nuances, os atores se veem obrigados a travar diálogos muito expositivos, a história se desenrola apressadamente. Fica a vontade de que Almodóvar tivesse desenvolvido um longa-metragem. O consolo é que na entrevista ele conta como daria continuidade à trama.