Gustavo Spolidoro fazendo um filme de Natal? É o que pode se perguntar, diante do vindouro Uma Carta para Papai Noel, que terá estreia nacional no final de novembro, o espectador para quem o nome do diretor porto-alegrense de 51 anos está associado ao cinema experimental. São dele, por exemplo, os curtas-metragens Velinhas (1998) e Outros (2000) e o longa Ainda Orangotangos (2007), todos rodados em um único plano-sequência. Também assinou os documentários Morro do Céu (2009), em que foi o responsável não só pela direção, mas também pela fotografia, pelo som, pela operação de câmera e por toda a produção de set enquanto acompanhava o cotidiano de um adolescente numa comunidade de Cotiporã, na Serra, e Errante (2016), outra aventura solitária, em que o cineasta vai interagindo com os personagens nos quais esbarra pelas ruas a partir da Lancheria do Parque, tradicional ponto de encontro do bairro Bom Fim, em Porto Alegre. E ainda foi um dos idealizadores do CineEsquemaNovo, festival lançado em 2003 com foco na inovação e no alternativo.
Mas já faz alguns anos que Spolidoro vem se dedicando ao público alvo de Uma Carta para Papai Noel: as crianças (e, por extensão, as famílias). Estão no seu currículo duas séries infantis — Ernesto, o Exterminador de Seres Monstruosos (2017) e A Velha História do meu Amigo Novo (2018) — e outra para adolescentes, Formigas, que foi produzida em 2018 mas permanece inédita por causa de um rompimento unilateral de contrato pela TVE (outros quatro seriados estão no mesmo limbo). A adolescência também está no foco da mistura de drama, aventura e fantasia Os Dragões (2021), que é inspirada em contos do mineiro Murilo Rubião e acompanha um grupo de cinco amigos de Cotiporã assustados com a ideia de envelhecerem e precisarem assumir responsabilidades.
— Em 2016, eu me vi em uma crise profissional — conta Spolidoro. — Eu me fiz uma pergunta que me conduziu a outros caminhos: será que estou fazendo as coisas certas para as pessoas certas? Não queria mais fazer filme para mim mesmo. A gente não precisa fazer arte sempre para sofrer, se vingar, curar cicatrizes. Em dado momento, percebi que havia me libertado dessa questão e pude pensar mais em quem vai assistir. Queria ir além do público que vai a festivais, a salas de cinema de arte, do público da classe média alta. Na verdade, desde o nascimento da minha filha, a Aimée (hoje com 16 anos), eu já vinha pensando em fazer coisas para crianças. Elas dão um retorno muito mais verdadeiro e espontâneo do que os adultos. Uma criança dizendo que queria ser o Ernesto me dá muito mais alegria do que um elogio da crítica. Esse retorno me abastece.
E foi justamente de Aimée que nasceu o roteiro de Uma Carta para Papai Noel, elaborado por Spolidoro e Gibran Dipp. Quando ela tinha seis anos, Spolidoro escreveu com a filha uma cartinha para o Bom Velhinho.
— Ela fez perguntas que geralmente as crianças não fazem: o que ele faz nos outros 364 dias do ano? Será que ele gosta de lasanha? Será que os duendes e os ursos polares ganham presente? Será que ele sabe andar de bicicleta? Mas se a bicicleta afundar na neve? — enumera o diretor. — A gente só pede coisas para o Papai Noel, ninguém se preocupa com o que ele sente. Acabamos tendo uma relação um pouco cruel com uma figura que é muito importante no universo infantil. Então, embora eu não goste de usar essa palavra, se o filme tem uma moral, é a de provocar empatia. Que as crianças saiam do filme pensando não só no Papai Noel, mas nos sentimentos das outras pessoas.
A trama se passa e uma cidadezinha fictícia da Serra, Vila Alegre. Jonas (interpretado por Caetano Rostro Gomes) é um menino órfão de oito anos que vive em uma casa de acolhimento, onde as crianças já não recebem presentes de Natal há um bom tempo. O guri resolve escrever uma carta ao Papai Noel, papel de José Rubens Chachá, que recentemente encarnou Silvio Santos na série O Rei da TV (2022-). Quer saber se ele anda muito ocupado ou se o Rio Grande do Sul fica muito longe. Aí, Papai Noel resolve viajar a Vila Alegre para investigar o caso.
Uma Carta para Papai Noel está em fase de pós-produção, sendo editado em Montevidéu por Pablo Riera, montador de A Teoria dos Vidros Quebrados (2021). A supervisão de efeitos visuais é de Pedro de Lima Marques, laureado no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro por Contos do Amanhã (2020), e Arthur de Faria compôs a trilha sonora, que inclui uma canção escrita especialmente para o filme, na voz de Fernanda Takai, da banda Pato Fu.
Com distribuição nacional da Pandora Filmes, o longa-metragem tem produção de Aletéia Selonk, que, à frente da Okna Filmes, traz no currículo títulos premiados como Ponto Zero (2015), Mulher do Pai (2016) e A Primeira Morte de Joana (2021). Fazer Uma Carta para Papai Noel trouxe uma coleção de desafios e enfatizou uma reflexão, conta Aletéia.
— É uma produção que desde o início foi diferente para todos nós. Eu ainda não havia tido uma experiência tão livre e tão forte de construção de universo, de cenografia em estúdio, de imaginário fantástico. O Pedro de Lima Marques diz que tem sido uma delícia ter, pela primeira vez, a possibilidade de fazer tantas coisas de efeitos visuais em um longa-metragem — afirma a produtora. — E estamos trabalhando com uma distribuição nacional e com um filme para crianças e famílias. O catálogo da Okna é marcado por filmes mais autorais, de festival, com lançamentos regionalizados. Eu já fiz filmes para crianças (como a animação As Aventuras do Avião Vermelho, de 2014), mas estavam espalhados no nosso catálogo. Uma Carta para Papai Noel é nosso filme de estreia de um braço de desenvolvimento. Eu não pararei de produzir conteúdo para esse público. Não vai ser algo esporádico, vai ser um atrás do outro, se depender de mim. Essa proposta atende à ideia de formação de público, fundamental do ponto de vista mercadológico, e também está alinhada a uma questão: qual é a relevância do que eu produzo? Uma Carta para Papai Noel é uma obra de entretenimento, mas também pode impactar a sociedade positivamente, ao retratar as casas de acolhimento e abordar o tema da adoção tardia.