Os Infiltrados (2006), que a HBO Max acrescentou a seu catálogo recentemente, talvez não seja o filme favorito dos fãs de Martin Scorsese. Talvez nem seja o mais característico, uma vez que se trata da versão de um cultuado policial de Hong Kong (Conflitos Internos, de 2002). Mas é a obra que valeu ao cineasta estadunidense seu único Oscar em 14 tentativas, como diretor, roteirista ou produtor.
Scorsese, 80 anos, assinou seu primeiro longa-metragem, Quem Bate à Minha Porta?, em 1967. Sua estreia na festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood aconteceu por causa de Touro Indomável (1980), pelo qual concorreu ao troféu de diretor. Nessa categoria, foi indicado, no total, nove vezes — a última delas por O Irlandês (2019). Como um dos produtores desse épico, disputou também o prêmio de melhor filme, como em A Invenção de Hugo Cabret (2011) e O Lobo de Wall Street (2013). As outras duas indicações foram como coautor dos roteiros adaptados de Os Bons Companheiros (1990) e A Época da Inocência (1993).
A solitária estatueta dourada de Scorsese é a de direção — Os Infiltrados também ganhou o Oscar de melhor filme, mas só tinha Graham King como produtor. Houve mais dois triunfos: roteiro adaptado (por William Monahan) e edição (Thelma Schoonmaker, a indissociável colaboradora do cineasta). E Mark Wahlberg concorreu como ator coadjuvante.
Embora tenha trocado de cidade em Os Infiltrados — o cenário agora é Boston, não mais sua amada Nova York —, Martin Scorsese está em casa. O diretor volta a ofertar um envolvente e nervoso drama criminal que, a exemplo de Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros, Cassino, Gangues de Nova York e O Irlandês, também traça um painel histórico dos Estados Unidos (ainda que não seja tão amplo).
Foi a terceira de cinco parcerias com Leonardo DiCaprio — depois de Gangues de Nova York e O Aviador e antes de Ilha do Medo e O Lobo de Wall Street (os dois voltaram a trabalhar juntos no policial Killers of the Flower Moon, que em maio vai competir no Festival de Cannes). Os Infiltrados também foi a primeira e até agora única vez em que Scorsese dirigiu um dos grandes atores de sua geração, Jack Nicholson.
Os protagonistas do filme andam ao mesmo tempo ao lado e fora da lei. Billy Costigan (papel de DiCaprio) é um tira imiscuído na máfia irlandesa. Colin Sullivan (interpretado por Matt Damon) ingressou na polícia de Boston a mando do chefão do crime, Frank Costello (Nicholson). Logo um estará à procura da identidade do outro, em uma caçada que toma rumos surpreendentes e traz, como de costume para Scorsese, a brutal exposição da violência.
Os Infiltrados narra a trajetória de Billy e Colin em paralelo, contrapondo a angústia e a solidão do primeiro ao estilo sedutor e calculista do outro, com atuações extraordinárias de DiCaprio e Damon. Entre eles, está um vilão talhado para Nicholson: malvado, obcecado por sexo, imprevisível e cheio de frases de efeito.
A história de opostos e simetrias dos dois informantes (ou "ratos", para usar a gíria do meio) ilustra o mundo contemporâneo na visão de Scorsese, em que os limites entre o bem e o mal estão borrados, como disse, à época, em entrevista ao jornal britânico The Guardian. E onde a moralidade não existe, prossegue o cineasta, não há mais pecado, portanto, não há mais redenção. Nesse contexto, parece não haver espaço para um de seus temas maiores, a culpa católica. Não é só por floreio verbal que Frank Costello diz a dois padres que Deus não manda por ali.
As cruzes, por sua vez, estão viradas na letra X, uma homenagem ao filme de gângster Scarface (1932) e um símbolo da morte, vista em janelas, paredes, no chão e até na iluminação. Assim, é duplamente significativo o título original de Os Infiltrados, The Departed, referência "aos fiéis que partiram".