Na Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (FLDS), tema da série documental Rezar e Obedecer, na Netflix, a poligamia e o abuso de crianças e adolescentes não são pecados. Pelo contrário: são um caminho para a salvação quando vier o Apocalipse.
Mas o paraíso é uma prerrogativa masculina nessa igreja surgida no começo do século 20, em uma cisão dos mórmons. São os homens que podem ter muitas esposas — três é o mínimo, só que alguns chegam a 10, 30, 65. Isso mesmo: 65.
Na chamada FLDS, mulheres são como moedas a serem acumuladas — e trocadas, quando o negócio for bom para o sujeito. Ou mesmo roubadas. Famílias podem ser separadas, se assim decidir o Profeta, cuja voz parece mais alta do que a de Deus.
Seu principal mandamento é "keep sweet and pray" (o título original da minissérie), mantenha-se dócil e reze é endereçado especialmente às fiéis do sexo feminino, que precisam usar vestidos compridos e monocromáticos e passar horas fazendo um penteado cheio de tranças. O objetivo é evidente: quanto mais tempo gastam com o lado de fora da cabeça, menos gastam com a parte de dentro.
A lavagem cerebral inclui a supressão de conteúdos de Ciências e de História na escola. Funciona tão bem porque se faz acompanhar pelo isolamento geográfico — na cidadezinha de Colorado City, no Arizona (referida na minissérie por seu nome anterior, Short Creek) — e tecnológico.
Apartadas do mundo exterior, cerca de 10 mil pessoas mantinham-se dóceis e obedientes a Warren Jeffs, o Profeta. O fanatismo religioso turvava o juízo: permitia-se que Jeffs e outros homens "casassem" com garotas de 12, 13, 14 anos — um eufemismo para o estupro de crianças e adolescentes.
Meninos também sofriam abusos. Não eram sexualmente violentados, mas viravam mão de obra barata ou até escrava na construção civil, uma enorme fonte de renda para a Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Quando chegavam mais perto da vida adulta, corriam o risco de serem expulsos da comunidade, seja para evitar a competição pelas esposas, seja por discordarem das ideias e das ordens de Jeffs.
Como já deu para notar, era um circo de horrores, um ambiente retrógrado, restritivo e opressivo ao qual era difícil contestar e do qual era mais difícil fugir. As mulheres com a coragem de tentar isso tinha de pensar na quantidade imensa de familiares que seriam deixados para trás, nas dezenas de filhas e irmãs que ficariam desprotegidas, à mercê de um destino implacável. Mas algumas conseguiram escapar e, aos poucos, a verdade sobre o que acontecia na FLDS foi chegando à imprensa e às autoridades.
Um dos aspectos mais espantosos do documentário dirigido por Rachel Dretzin a partir de imagens e áudios de arquivo, reencenações (que poderiam estar melhor sinalizadas) e entrevistas com dissidentes, policiais e jornalistas é que toda essa história com cara de passado longínquo só veio mesmo à tona já no século 21 — em 2008, uma operação policial em um rancho no Texas encontrou evidências de abusos sexuais, físicos e psicológicos de crianças, adolescentes e mulheres. É como se Rezar e Obedecer fosse uma versão real e mais tenebrosa de A Vila (2004), suspense do cineasta M. Night Shyamalan.