Eu era criança e já ouvia falar sobre um médico, “um tal Dr. De Patta”, entrincheirado no hospital enquanto uma turba de moradores ameaçava incendiar o prédio de madeira na cidade onde nasci, Anta Gorda, que fica no Vale do Taquari e hoje tem cerca de 6 mil habitantes.
Não era tratado como fato histórico, desses que se estudam na escola, nem assunto recorrente entre os vizinhos no chimarrão tomado na calçada no fim de tarde. Mas volta e meia meu pai e seus compadres, quase todos nascidos na década de 1920, voltavam ao tema, como história ou como lenda, dependendo da fonte. E eis que, no início deste ano, me chega às mãos o livro O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May, que tem como pano de fundo esse episódio que completa um século em 2023. Lançado em dezembro, o livro deve ter nova sessão de autógrafos em março.
May é médico, preside a Unimed Federação/RS e, além da medicina, tem um pé e tanto na literatura, com nove livros publicados. Atuou no Vale do Taquari e por lá cruzou com outro personagem da minha infância, o também médico Sérgio Paulo Bertoglio, falecido em 2022, aos 90 anos, e que clinicou em Anta Gorda entre 1968 e 1972 – Bertoglio é quem o teria ajudado nos contatos com fontes na cidade quando a ideia do autor ainda era escrever uma peça teatral. Queria produzir ficção baseada em histórias reais e viu ali um ótimo mote, mas, com pouca informação, abandonou a ideia por anos.
Ao revirar anotações, décadas depois, May encontrou aquelas sobre o Dr. Michele De Patta, médico calabrês que serviu como oficial na Primeira Guerra Mundial e se transferiu para o Brasil em 1920, 45 anos depois da chegada dos primeiros imigrantes italianos. Conta May, baseado em pesquisas da também médica Leonor Schwartsmann na obra Médicos Italianos no Sul do Brasil, que, como muitos outros, De Patta buscava novas fronteiras para exercer a profissão – à época, não era exigida a revalidação do diploma de Medicina. A descrição da pesquisadora sobre o episódio de Anta Gorda envolvendo De Patta e sua família e um relato do próprio médico – Leoni di Calabria in Terra Riograndense (“Leões da Calábria em terras rio-grandenses”, em tradução livre), traduzido por uma de suas filhas, Igéa Lúcia De Patta Pillar, que escreveu Da Calábria ao Brasil: A História de um Médico Italiano – trouxeram os elementos de que May precisava para a sua narrativa.
Fora os nomes da família De Patta – além dele, emigraram para o Brasil a esposa Ersília, dois filhos e uma babá –, de cujos descendentes obteve autorização para usar o nome verdadeiro, o autor observa em uma nota no final do livro que todos os outros personagens ganharam nomes fictícios. Os principais são um professor, a secretária/enfermeira do médico, o padre, o intendente e um curandeiro. Na mesma nota, May adverte: “Recomendo (...) que seja lido como uma narrativa ficcional, tendo por pano de fundo acontecimentos reais”.
Do confronto entre De Patta e o padre da comunidade, a versão sempre ouvida de meus conterrâneos, meus poucos conhecimentos históricos então vinculavam aquela batalha a alguma das escaramuças da Revolução de 1923, última guerra civil em território gaúcho que colocava de um lado os chimangos de Borges de Medeiros e os maragatos de Assis Brasil. May fez uma pesquisa minuciosa da época, tanto de acontecimentos quanto de costumes, mas não menciona diretamente a Revolução de 1923. Revela, mais do que tudo, uma dualidade entre a ciência, representada pelo médico e pelo professor, e o desconhecimento de novas práticas, simbolizado pelo curandeiro e pelo padre, além da truculência de autoridades, traduzida na pessoa do intendente. Os mais de 200 colonos que sitiam no hospital o médico e sua família, o professor e a secretária, além de uns poucos pacientes, servem de massa de manobra naqueles tempos de desinformação e violência.
O que aconteceu naqueles três dias de tensão e resistência? Bom, isso ficou para a imaginação do autor e fica agora para a sua leitura. Conto só a sequência: De Patta e a família saíram dali para Porto Alegre e para outras cidades do Interior até se estabelecer em Santa Catarina, onde o médico morreria em 1946. Para mim, restou o gosto de ver eternizado algo que de tempos em tempos voltava à minha memória e um certo arrependimento por não ter dado a devida importância a uma história passada, literalmente, no meu quintal.