No texto a seguir, a jornalista gaúcha Gisele Teixeira, a convite da coluna, relata sua experiência percorrendo um dos Caminhos de Santiago de Compostela, um sonho de viagem que muitos acalentam. Confira.
"O primeiro guia do peregrino a Santiago de Compostela de que se tem notícia é o Livro V do “Codex Calixtino”, manuscrito de meados do século 12, com boa parte da história da peregrinação medieval. Esta obra, em latim, atribuída ao monge Aymeric Picaud, descreve o percurso do Caminho da França a Compostela, com “dicas” sobre as cidades, templos a visitar e gastronomia de cada região. Para muitos, é considerado o primeiro guia turístico da história. O livro mais antigo de todos os preservados (há 12 cópias feitas à mão) está na Catedral de Santiago.
Desde então, o Caminho vem sendo relatado, desenhado, ilustrado e fotografado. Saímos dos livros com capa de madeira, pendurados nos cintos dos peregrinos desbravadores, até chegar aos aplicativos de celular. Sem falar nos milhares de guias e tutoriais na internet.
Mesmo com tanta informação, quem volta continua contando suas histórias. É que cada peregrinação é única, com novidades e descobertas, uma experiência tão rica que queremos compartilhar o que deu certo para facilitar o planejamento dos que têm o mesmo sonho. As dicas deste texto foram compiladas em maio de 2022 por mim e pela Teresa Cristina Machado, a Kiti, duas jornalistas gaúchas, amigas de infância. Que o nosso relato o motive a planejar seu trajeto."
Como fizemos
O QUE É: o Caminho de Santiago não é apenas um caminho, mas uma extensa rede de trilhas e rotas que começam em lugares diferentes e terminam em Santiago de Compostela, na Espanha, onde está o túmulo do apóstolo São Tiago. Hoje, são 281 rotas referenciadas, 83 mil quilômetros através de 29 países. Embora o Caminho comece na porta de cada peregrino, ao longo dos séculos foram identificadas rotas principais, sendo o Caminho Francês o mais tradicional, com 800 quilômetros. Cerca de 350 mil peregrinos chegam por ano a Compostela (entre eles 6 mil brasileiros), de 190 países diferentes.
O NOSSO CAMINHO: optamos pelo Caminho Central Português, o segundo mais popular desde o século 12. Saímos do Porto e fizemos 240 quilômetros a pé — de 19 a 35 quilômetros por dia — com pouso em 13 cidades. Uma boa decisão foi hospedar-nos na chegada no Albergue de Peregrinos, onde encontramos informações atualizadas e as pessoas que nos acompanharam durante a rota.
QUANTO TEMPO: embora seja possível fazer este Caminho em 12 dias, optamos por percorrê-lo em 16 para usufruir mais do percurso. Queríamos curtir! Peregrinar não significa se penitenciar. Ficamos duas noites em cidades que sabíamos haver mais atrativos: Barcelos, Pontevedra e Santiago de Compostela. No total, incluindo dias extras no Porto na ida e na volta, e uma esticada a Finesterre, foram 20 dias na Europa.
PESQUISA: antes de viajar, pesquisamos em diferentes fontes e colocamos as informações num documento, o nosso “bookinho”, que imprimimos e que nos acompanhou todo o tempo. Antes de entrar nas cidades, ou na hora de descanso, buscávamos o texto para refrescar a memória.
PREPARAÇÃO: não é preciso um personal trainer para se preparar, mas este não é um percurso para sedentários. A dica é começar a fazer tudo a pé ou de bike, subir escadas, e aumentar os trajetos em tempo e dificuldade. Se der, treinar com a mochila. Perto da viagem, fizemos percursos diários de 10 quilômetros em dias consecutivos. Eu tinha feito o Caminho das Missões (RS) e uma expedição à Patagônia (Argentina) e a Teresa nos Lençóis Maranhenses, como test drive.
DISTÂNCIAS: nosso percurso ideal foi de 20 quilômetros diários no máximo. Nos dias em que fizemos mais, cansamos muito. Nos treinos, a média era de 5 ou 6 quilômetros por hora, valor que caiu para 2,5/3 quilômetros no Caminho em função de diferentes terrenos, chuva, calor, paradas para fotos, descanso e alimentação.
APLICATIVOS: usamos o Camino Ninja, com informação completa da infraestrutura disponível quilômetro a quilômetro. Para viajar antes e depois, o espaço do Caminho no Google and Arts é espetacular.
A MOCHILA E O CALÇADO: até o último momento foi um põe e tira coisas da mochila que, segundo recomendações, não deve ter mais de 10% do peso corporal. Levamos à risca a sugestão e deu certo! Nos albergues é comum encontrar cestos com coisas desnecessárias na caminhada, como perfumes. Optamos por uma mochila leve (1,1kg) e calçados de trekking amaciados. Nada de estrear calçado novo!
ALIMENTAÇÃO: o Caminho é percorrido com sabor. Tínhamos uma lista de comidas para provar em cada localidade. Por exemplo: a Torta de Santiago — um bolo de amêndoas cuja primeira referência é de 1577 —, o polvo à galega e as pimentas de Padrón, vinho verde e do Porto. Durante todo o trajeto é oferecido o Menu Peregrino (8 a 12 euros), com entrada, prato principal, sobremesa, água ou vinho. Não leve comida na mochila. Ninguém passa fome no Caminho!
HOSPEDAGEM: para diferentes experiências, mesclamos albergues municipais públicos (8 a 12 euros a cama em dormitório compartilhado), albergues privados (15 a 20 euros), pousadas e hotéis (no máximo 30 euros por noite). Os privados têm melhor infraestrutura do que os públicos (que em alguns casos não oferecem lençóis e toalhas), aceitam reservas e oferecem quartos duplos. Mas alguns públicos ficam em edifícios históricos e valem pela experiência. Importante: estes fecham às 22h e o acesso é por chegada.
GASTOS TOTAIS: 40 euros por dia com hospedagem, alimentação e lazer, sem passagem aérea.
PARA CONCLUIR: mesmo planejando muito, o melhor é o que não se pode prever — as amizades que vão se construindo no trajeto, a hospitalidade dos povos e a descoberta das línguas (uma delícia conhecer o galego, irmão do português). Também a música, o artesanato, a natureza, as lendas, as conversas e os silêncios. Buen camino! Vá sem medo!
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