Para falar da Associação Férias Viva, organização criada para orientar a prática segura de atividades no turismo, é preciso contar uma história. Em 15 de fevereiro de 2002, a arquiteta Silvia Basile passava o Carnaval com a filha, Victória, a Vivi, nove anos, em um resort de alto padrão em Alagoas, quando a menina e duas amigas foram andar a cavalo, um serviço oferecido pelo hotel. Passados alguns minutos, Silvia recebeu a notícia de que Vivi havia se acidentado e, após horas de angústia, já no hospital, constatou que a filha estava morta.
Tentando elaborar o luto, depois dos trâmites, a arquiteta escreveu uma carta ao gerente do empreendimento apontando uma série de falhas na segurança. Não apenas quanto à atração oferecida à filha (com o hotel lotado, o instrutor era improvisado, a égua não era dócil e nem havia selas adequadas para crianças), mas também em outras atividades e na construção. A resposta do gerente, se eximindo de responsabilidades, fez com que ela quisesse ir à imprensa desabafar.
Sem saber por onde começar, recebeu o conselho para criar uma ONG. Nascia aí a Férias Vivas, poucos meses após a tragédia. Silvia descobriu que não havia, dentro da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), regras específicas para o turismo, uma luta travada a seguir por ela e que resultaria nas 42 normas técnicas para o turismo de aventura, hoje referência no mundo inteiro. É sobre como a associação atua para evitar acidentes no turismo que conversei com Aline Bammann (entrevista abaixo), 32 anos, gestora institucional da Férias Vivas.
As origens
"Em 24 de julho de 2002, quando Vivi faria 10 anos, foi oficializada a associação. Já é bem impressionante, por si só, a capacidade da transição da dor para a institucionalização da causa, iniciando uma revolução. Em 2002, sequer existia o Ministério do Turismo, ele ficava na pasta do Esporte. A associação chegou trazendo toda uma cultura de segurança e planejamento para o setor. Foi a Silvia que conectou a ABNT com o movimento do turismo de aventura, que começava a se solidificar no Brasil, e disse que era preciso definir um padrão mínimo de segurança para essas atividades operarem comercialmente. Ela entrou nisso de uma maneira dolorosa e transformou o turismo, garantindo a cola dessa rede de interessados em profissionalizá-lo. É bonito ver que, quase 20 anos depois, há muitos casos de boas práticas, muita gente interessada em trabalhar de forma correta, colocando o turista em primeiro lugar."
Normas técnicas
"Após o acidente com a Victória, uma das primeiras reflexões foi: como é que um resort de alto padrão não seguia normas de segurança? Foi quando se descobriu que não havia regulamentação do turismo. A ABNT foi mobilizada, com o Ministério do Turismo, e se investiram recursos públicos num programa de padronização e regulamentação chamado Aventura Segura. Foram anos para desenvolver as 42 normas técnicas de segurança para turismo de aventura, escolhido como um piloto para sua execução. Elas não são estáticas, se atualizam conforme o mercado se atualiza, com novos equipamentos e atividades. Em 2010, o Decreto 7381, que regulamenta a lei Geral do Turismo, fez com que seguir as normas e implementar um sistema de gestão de segurança passasse a ser obrigatório. Não são sugestões ou referências de boas práticas. Elas têm poder de lei. Todo operador de turismo de natureza tem obrigação de saber."
Voluntários
"Há apenas três pessoas contratadas na equipe administrativa da Férias Vivas, com a função de manter a rede funcionado. Tirando isso, todas as contribuições são voluntárias, como os embaixadores, profissionais que atuam há pelo menos 20 anos no turismo, com conhecimento técnico aprofundado, e que são consultores de sistemas de gestão da segurança. Já os 462 voluntários e os pesquisadores são turistas que já viajaram o Brasil e o mundo e reuniram um repertório de experiências, algumas nem sempre positivas, e querem contribuir. Toda gestão de risco, incluindo o turismo, parte de casos reais: o que aconteceu, por que aconteceu e como poderia ser evitado. Esse mapeamento não existe oficialmente pelo Ministério do Turismo. Nós fazemos de maneira artesanal, caso a caso, por isso esses voluntários são tão importantes."
Mapeamento
"Já acompanhamos mais de 3.960 casos. A primeira fonte é uma varredura diária na imprensa. Infelizmente, poucas reportagens aprofundam a causa dos acidentes e, quando se trata de acidentes de turismo, é muito importante fugir da fórmula de boletim policial, já que sempre tem a história de uma pessoa por trás, o que ajuda na sensibilização. A segunda fonte é o aplicativo para celular EUVIVI, gratuito e colaborativo, onde qualquer um pode reportar acidentes, inclusive leves. A terceira fonte é o depoimento pessoal de gente que conhece nosso trabalho e conta sua experiência, às vezes pelas redes sociais."
Subnotificação
"O abafamento de acidentes e a subnotificação são o principal problema de segurança turística no Brasil. Tem uma responsabilidade tripla aí: do empresário, que, com receio de uma imagem negativa, não compartilha o acidente nem com o setor; do gestor público, que tem medo de manchar a imagem da cidade; e do turista, que não vê a importância de denunciar. Não é esperado do consumidor, como parte vulnerável, que entenda todos os riscos envolvidos numa atividade, ainda mais quando há uma empresa contratada. Pelo Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade de garantir a segurança é do prestador do serviço. Mesmo quando se torce o pé numa trilha, há medidas que podem ser adotadas pelo prestador do serviço para evitar isso. No caso de quem passou por um acidente leve e moderado é mais importante ainda, porque se essa ação corretiva não for feita, pode vir a ocorrer um acidente grave. Normalmente, antes de um acidente fatal há vários sinais ignorados. Nossa função é ajudar que os sinais não sejam ignorados."
Os números
"Como há subnotificação, temos acesso a uma parcela muito pequena de casos reais. Em 2019, chegou-se a ter mais de uma morte por dia, principalmente afogamentos, que são mais facilmente registrados. Metade do nosso banco de cadastros de acidentes não são em atividades consideradas radicais. No canionismo, por exemplo, que envolve muito mais risco, o número de acidentes é menor, porque quem organiza garante que nada saia fora do planejado. Metade do nosso banco de dados são de casos graves e fatais, o que não significa que metade dos acidentes sejam graves e fatais."
Onde estão os perigos
"Nós defendemos que a metodologia do sistema de gestão de segurança seja aplicada para qualquer atividade de turismo, principalmente hoteleira. Recebemos muitos relatos de acidentes em piscinas, um local às vezes negligenciado. É uma falha grande, tanto do mercado quando do turista, achar que só há risco em atividades radicais. Se houver um acidente em um meio natural, às vezes o resgate leva dias, as vias são complicadas, as equipes de resgate precisam de treinamento específico. Por isso, conseguir evitar um acidente vale muito, pensando no tempo e no desgaste que envolve um resgate, colocando em risco inclusive a vida dos resgatistas. Hoje não há efetivo e nem interesse para fiscalizar todas as atividades oferecidas nas redes sociais, o controle pela sociedade civil é o que funciona."
Como perceber o risco
"Não existe um manual, mas há dicas:
- O turista não deve terceirizar a segurança 100% ao prestador de serviço. Ele precisa fazer uma pesquisa prévia sobre a empresa e o destino;
- Não se fechar para os problemas, saber que acidentes podem acontecer e podem ser evitados. Nosso lema é "com segurança você mais longe". Quanto mais preparado estiver, coisas mais incríveis e inusitadas você consegue fazer numa viagem;
- No turismo de aventura, se o turista só perguntar para a empresa se ela conhece e segue as normas de ABNT e sistemas de gestão de segurança, já vai ter uma ideia se ela é séria ou não. Também pode questionar se a atividade oferece risco. Se o guia disser que o risco é zero, ou ele está mentindo, e aí o cliente precisa cair fora, ou ele é tão amador que nem tem conhecimento dos riscos. Quem é sério no mercado não só faz um inventário dos perigos como está diariamente se planejando para evitá-los.
- É uma dificuldade para a associação falar de problemas em viagens de turismo. Por isso, fazemos esse convite: aproveite, curta, sonhe, mas deixe um espacinho para o planejamento."
Suporte às vítimas
"A Férias Vivas foi criada por uma família que perdeu um filho. Isso está no nosso cerne. Em contato com outras famílias, Silvia, a fundadora, se deu conta de que a sua não era uma situação isolada. Por isso, entrar em contato com as famílias, dizer que não estão sozinhas, é importante. Damos, primeiro, o suporte emocional. Dependendo do momento em que está a família, a primeira questão que surge é em relação às responsabilidades - a gente apoia tanto o entendimento técnico quanto a responsabilidade civil, a repercussão jurídica. Nós incentivamos as denúncias porque isso garante que a empresa mude a operação. Como consumidores, temos de ficar muito espertos: se você sentir que tem alguma coisa errada naquele passeio, não faça, coloque a sua integridade física em primeiro lugar. Hoje o cenário está melhorando na questão do profissionalismo, mas ainda há muitos amadores."
Onde encontrar a ONG
Site: feriasvivas.org.br
App (em AppStore e Google Play): EUVIVI
Instagram: @feriasvivas