Passei a manhã de sábado em uma comunidade indígena ribeirinha na Amazônia. Aprendi muito com moradores da etnia Baré de Nova Esperança, no interior da Unidade de Conservação Reserva de Desenvolvimento Sustentável Puranga Conquista. Minha primeira incursão por esse microcosmo amazônico me ensinou um pouco de religiosidade e cultura, de artesanato, de gastronomia, de tradição, de biodiversidade e preservação.
Viajei a esse lugar mágico sem sair da sala de casa, o que só aumentou minha vontade de pegar o próximo voo, assim que possível. O roteiro pelo cotidiano dos Baré aconteceu virtualmente para um grupo de jornalistas e influenciadores da mesma forma que é reproduzido a viajantes do Brasil e do Exterior, um jeito encontrado desde agosto de 2020, com a pandemia, para que eles pudessem manter as experiências e garantir parte de sua renda. Desde então, foram 11 viagens online, com 200 participantes, que geraram mais de R$ 7 mil. E deve ser não só uma resposta à crise, mas uma alternativa para manter as vivências com viajantes, com alcance maior e menor impacto ambiental.
A experiência desenvolvida começou a ser gestada aos poucos a partir de 2008. Antes disso, explicou Nailza Porto, turismóloga no Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPE), em Manaus, e que trabalhou por anos com essa comunidade, os Baré eram tratados como “cenário” por barcos turísticos que passavam desde 2005 pelo Rio Cuieiras, um afluente do Rio Negro. José Pancrácio, o líder da comunidade, uma das sete integrantes da unidade de conservação, foi quem buscou ajuda junto ao IPE para dar forma ao turismo comunitário, com envolvimento dos moradores – hoje são cerca de 140, 47 dos quais crianças com até 10 anos.
Para chegar até Nova Esperança na versão real, é preciso tomar um barco do tipo recreio em Manaus, num trajeto de seis a 11 horas (podem ser reduzidas para menos de três horas, em uma voadeira, a um custo bem maior). Na versão virtual, bastou usar uma plataforma digital para estar conectada com Joarlison Garrido, 36 anos, vice-cacique, diretor da escola indígena, graduado em Biologia na Universidade do Estado do Amazonas.
Que a conexão com a internet será boa não se pode prometer – afinal, estamos no meio da Floresta Amazônica. Mas a simpatia é 100% garantida. Joarlison faz o papel de apresentador-guia-monitor. Ele estava particularmente feliz no sábado com o nascimento, na madrugada, da 47ª criança do grupo, por acaso sua sobrinha – o parto foi realizado por Hugulina Garrido, avó da recém-nascida, também a cozinheira responsável por nos mostrar um pouco da culinária local.
Joarlison nos conduziu pela aldeia apresentando o pajé Aldovar da Silva, o “Baixinho”, passando pela biblioteca (a Uka), onde Lianária de Assis e Leidiane Silva exibiram os grafismos que enfeitam o lugar e até nos ensinaram a desenhar um deles, típico das mulheres para adornar o rosto em dias de festa. Enquanto respondia a perguntas ao vivo, Joarlison seguiu caminhando por pontos onde a conexão funcionava melhor para que o artesão Francisco Amazonas contasse como produzem suas belíssimas peças em resíduos de madeira – “sem cortar um único galho da floresta” – e biojoias à base de sementes. A peça mais famosa é um banquinho em formato de arraia. O vice-cacique introduziu ainda para o grupo a agente ambiental Rosimeire Melo, uma das 10 responsáveis por ajudar no repovoamento de quelônios das espécies Irapuca e Cabeçudo na região. Desde que os indígenas perceberam que a população de tartarugas se reduzia, por conta de predadores naturais e, principalmente, de contrabandistas, passaram a recolher os ovos e levá-los para viveiros artificiais junto à aldeia, um processo difícil e demorado que vai de agosto a março, quando os filhotes são devolvidos ao rio.
Sem dispensar a ciência – toda a aldeia já recebeu a primeira dose da vacina contra a covid-19 –, os Baré guiam-se pela natureza e por antigas tradições para se proteger. Crianças recém-nascidas passam pelo ritual da defumação com “breu” que, esclarece Joarlison, é considerado ouro para eles. Há dois tipos de breu: um extraído da madeira e outro vindo do cocô de um sapo cunawarú, considerado o dono da floresta, que deposita seus excrementos no buraco de árvores. É a essa altura que nosso guia, para espantar a fome, serve-se de “chibé”, a que ele chama de bebida energética: mistura de água com farinha de mandioca.
E é assim que se encerra essa visita de quase três horas: mostrando um pouco da gastronomia. Hugulina Garrido usa o idioma dos Baré, o Nheengatu, para explicar como preparar uma pupeka. Joarlison traduz: o peixe, um matrinxã, é embrulhado em folhas de bananeira, amarrado na própria fibra da planta, e assado no fogo por no máximo cinco minutos. É servido com dois tipos de pimenta, limão e, sempre ela, a farinha de mandioca.
Nas vivências presenciais, aliás, é possível acompanhar todo o processo, da colheita da mandioca até ela chegar ao prato. Há trilhas na floresta e passeios de canoa, oficina de artesanato e tempo para só observar o pôr do sol ou fazer nada. A Braziliando, agência de volunturismo e turismo comunitário que é parceira dos Baré, organiza roteiros de quatro ou seis noites na comunidade. Mas isso, de novo, só quando a pandemia passar. Por enquanto, há esse incrível passeio virtual denominado Conexão Baré. Ele dá uma boa ideia de como praticar turismo sustentável, conectando-se com povos originários e com a natureza sem agredi-la.
* Viagem realizada a convite da Braziliando, agência especializada em volunturismo e turismo comunitário, principalmente no Amazonas
A Conexão Baré
* As próximas vivências abertas ao público serão nos dias 26 de junho e 31 de julho (bilíngue). Informações e inscrições pelo site braziliando.com. E-mail: discover@braziliando.com
* A comunidade também trabalha em experiências com pessoas com deficiência audiovisual ou auditiva
* Valor por pessoa: R$ 150 (ou valor solidário de R$ 225 para financiar outras participações). A duração é de duas horas e meia a três horas
* Preparativos para a viagem: os itens podem variar, mas, na preparação para a minha viagem, com uma semana de antecedência, recebi uma playlist, uma receita à base de mandioca, um quiz sobre a cultura Baré, um minidicionário em áudio e texto de Nheengatu, língua indígena derivada do tupi-guarani falada na bacia do Rio Negro e em outras regiões, além de vídeos desfazendo mitos sobre povos originários, "passaporte" e um manual para a viagem virtual.