Em entrevista a ZH um ano atrás, um mês após o início da pandemia, Mariana Aldrigui, 45 anos, tentava mensurar os prejuízos e desenhar cenários para um dos setores mais atingidos pela crise: o turismo. Pesquisadora e professora na área na Universidade de São Paulo (USP) desde 2006 e orientadora de projetos ligados ao desenvolvimento do turismo brasileiro, Mariana, que também preside o Conselho de Turismo da FecomercioSP e coordena as ações da ONG Global Travel & Tourism Partnership no Brasil, ainda se recupera dos efeitos do coronavírus (apesar de nunca ter viajado ao longo do período, quase não sair de casa e tomar todos os cuidados, ela testou positivo para o vírus um mês atrás). Enquanto isso, revisita dados e arrisca algumas perspectivas com base neles.
Um relatório recente da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa) mostra que, em 2020, as chegadas de turistas internacionais caíram 74% no planeta, fazendo a atividade regressar aos patamares de 30 anos atrás. No Brasil, não seria diferente: as viagens de estrangeiros ao país recuaram 49,2% no ano passado e a demanda por voos domésticos caiu 48,7%. O dado é parecido na ocupação dos hotéis: menos 49,9% (em Porto Alegre, -52%, com redução média de 19% no valor das diárias). Por trás desses números estão pessoas: de janeiro a novembro de 2020, o total de demissões em empregos formais no setor superou os 2,7 milhões, segundo o Ministério do Trabalho. O cenário atual e o futuro estão em discussão até hoje no Fórum Mundial de Turismo, com sede em Cancún (México), mas realizado de forma virtual, com o tema "Unindo o mundo para a recuperação". São esses pontos, além da segurança dos turistas e a imagem do Brasil no Exterior, que são tratados na entrevista a seguir:
Como classificaria a situação e as perdas do turismo passado mais de um ano do início da pandemia?
Há duas fontes de dados que não conflitam, mas diferem: a FecomercioSP estima em R$ 55,6 bilhões as perdas no Brasil em 2020, enquanto a CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), que é a entidade-mãe, estima um prejuízo seis ou sete vezes maior, porque eles englobam restaurantes e outros serviços, enquanto a FecomercioSP faz o cálculo mais restrito, só o que é gasto de turista mesmo e, ainda assim, só o que é mensurável com transações formais. Mas o turismo brasileiro tem muita informalidade. É muito maior a perda, não tem como medir. Não estava no radar de ninguém esse prejuízo. Ele deixa um alerta muito grande para os empresários, de todos os lugares do Brasil, que precisam aprender a trabalhar com cenários: positivo, conservador e absolutamente negativo. Muitos viram que não dá para contar com apoio de governo, tiveram de usar patrimônio como crédito. Agora se vê uma movimentação sobre a manutenção do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) ou outras medidas de crédito, que seguram um pouco empresas e pessoas. Mas é tudo muito incerto e o empresário fica refém dessas decisões, que andam muito lentas para o ritmo que a gente gostaria de ver.
"O Brasil tem o quinto maior mercado doméstico do mundo, a gente consegue sobreviver só com turismo doméstico. Empreendedores tiveram esse ano e tanto para se especializar e tentar achar o público-alvo e descobrir que, quanto mais perto ele morar, mais frequentes serão as visitas."
Tem como recuperar tanto prejuízo? Por onde o setor terá de recomeçar?
Em turismo e serviços não há recuperação de prejuízos, porque não existe estoque: não vendi, perdi e ainda arquei com os custos. Onde reside o maior desafio é retomar alguma atividade, em algum momento, ou, com mais veemência, obter apoio dos entes governamentais para que as empresas passem pelo período de crise e depois, quando a atividade retomar com mais consistência, possam pagar esses empréstimos. Ninguém está pedindo para que deem dinheiro, mas para renegociar e dar tempo de vida para essas empresas. Infelizmente, do ponto de vista da oferta de crédito, não passou de R$ 10 bilhões. A perspectiva é de pelo menos três a quatro anos para voltarmos a ter números similares a 2019. Mas ainda tem crise econômica, mudança no câmbio, imagem internacional... Então, essa previsão de recuperação em 2024 é uma previsão otimista.
Houve algum ponto positivo ao longo da crise?
O Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil aponta que há muitos contratos fechados de novas obras para projetos hoteleiros, especialmente em áreas litorâneas ou nas chamadas cidades secundárias. Há projetos novos, há gente encampando projetos parados e há retrofit. São empreendedores que veem oportunidade na crise. Gosto de deixar claro que a atividade turística, de alguma forma, vai continuar, vai melhorar. O que nos preocupa é o entremeio: quem perdeu o emprego e era muito qualificado voltará para ser contratado ou não? Ou vai para outro setor? E aí o turismo perde em produtividade, porque quando recontratar buscará gente mais jovem, sem formação, sem experiência.
Mesmo com o abre e fecha de atrações, serviços, fronteiras, dá para se ter uma ideia de o que se concretizou de modificações no setor e nas atitudes dos turistas? Os turistas mudaram?
Não, infelizmente. Ao contrário. O que se viu até agora — e que se estuda já há uns 60 anos — é um comportamento irresponsável em relação à comunidade visitada, e isso se exacerbou com a pandemia. As pessoas adotaram uma atitude de "eu quero ir pra esse lugar e vou de qualquer forma". Se viu isso nas praias do Brasil, entre o Réveillon e o início de janeiro, mesmo que a comunidade tenha optado em ficar fechada. E tem muita coisa em torno, tem a pressão dos comerciantes junto aos prefeitos, é tudo muito complexo, vai além do respeito ao morador ou à estrutura de saúde. Não acredito numa mudança de consciência ou respeito maior. O que ficou muito marcado, com a adoção dos protocolos, e dificilmente se voltará atrás, é o uso de máscaras, do álcool, do chamado "teatro da higienização". De agora até agosto, também vamos olhar com cuidado para a consolidação das bolhas ou corredores aéreos nas viagens internacionais, como a de Austrália-Nova Zelândia. Uma das principais discussões no Fórum Mundial de Turismo, por exemplo, é sobre passaportes sanitários e como isso vai ser controlado.
"Vai ser uma imagem a ser reconstruída, a do Brasil e a dos brasileiros, e não vejo isso com esperança para 2021. Não basta ter vacina, é preciso ter controle da epidemia, não significar risco para a gestão sanitária dos países. Vamos ouvir muito sobre xenofobia, porque os extremismos estão no mundo inteiro."
Um ano atrás, você já dizia que os brasileiros não seriam bem-vindos em outros países diante das atitudes do governo na época. Como vê a nossa imagem no Exterior passado um ano?
Não tenho a menor esperança para 2021. Nós vamos entrar na lista de persona non grata, mesmo que se chegue a 70% dos brasileiros vacinados até dezembro. Não é uma equação de uma variável só: além da vacina, tem de ter certeza de que a gente não desenvolva novas variantes e, se desenvolver, que a vacina usada seja capaz de lidar com essas variantes. A depender da gestão de cada um dos países, esse muro para receber ou não brasileiros vai sendo adiado. Tem a questão política e geopolítica e algo para além do aspecto burocrático: digamos que você possa ir, mas como é que vai ser tratado? Pode haver ataques xenofóbicos e grosserias. Vai ser uma imagem a ser reconstruída, a do Brasil e a dos brasileiros, e não vejo isso com esperança para 2021. Não basta ter vacina, é preciso ter controle da epidemia, não significar risco para a gestão sanitária dos países. Vamos ouvir muito sobre xenofobia, porque os extremismos estão no mundo inteiro. Os brasileiros chegaram a fazer isso com os chineses no início na pandemia. Não se pode minimizar a ignorância que existe em qualquer comunidade. Pode haver tratamento hostil por conta da degeneração da nossa imagem. O que se pode fazer de prático, agora, que não seja trabalhar pela gestão da pandemia? Nada. Não é o momento de gastar com promoção de viagem, fazer live, campanha, camiseta, mas um trabalho que recupere o tempo com a falta de gestão da pandemia.
Aquela previsão de que as viagens seriam retomadas primeiro para visitar a família e depois haveria o turismo regional a 100/200 quilômetros de distância se concretizou num primeiro momento. Essa regionalização veio para ficar?
Há um grupo de pessoas que transita entre a classe A e B, que praticamente nunca viajou pelo Brasil e sempre fez viagens internacionais, que se voltou para o Brasil e forçou operadoras a descobrir novos destinos e novos produtos para vender a eles. Não sei se vai rolar o encantamento, mas eles foram aos locais e divulgaram. Depois vem o grupo que consegue fazer viagens ao Exterior com menos frequência, mas que continua tendo orçamento pra viajar, e esses também vão atrás dessa onda. E, depois, o terceiro grupo, que faz viagens mais massificadas, pega o final da onda dessa divulgação mais estratificada. Se você tomar três destinos como Jericoacoara (CE), Morro de São Paulo (BA) e Fernando de Noronha (PE), por exemplo, vai perceber que eles conseguem atender a esses três grupos —com produtos muito exclusivos e caros, menos exclusivos e outros mais massificados — e eles convivem. Deve haver uma volta desse grupo com mais dinheiro para o turismo internacional, mas vai ter também esse aprendizado para viagens de menor duração —possivelmente intercalando viagens ao Exterior e no Brasil. Isso não depende só das pessoas, passa a ser um combinado, que também é do gestor do destino e dos empresários que devem continuar se vendendo, porque está provado que existe público. O Brasil tem o quinto maior mercado doméstico do mundo, a gente consegue sobreviver só com turismo doméstico. Empreendedores tiveram esse ano e tanto para se especializar e tentar achar o público-alvo e descobrir que, quanto mais perto ele morar, mais frequentes serão as visitas. As pessoas gostam de voltar, elas criam laços com os destinos.
Qual a história mais interessante de reinvenção/criatividade no setor que está vendo na pandemia?
O que eu mais gostei foi o de uma cidade do Canadá em que os responsáveis pelo turismo notaram que os moradores começaram a andar de bicicleta perto de um lago e a postar fotos lindas. Esse organismo de turismo criou uma campanha para atrair visitantes na qual os moradores promovem o destino na internet. Isso integra as pessoas, mexe com a autoestima do morador, pois são usadas as fotos de quem vive, reconhece e valoriza o lugar. Gosto também de uma ideia do governo da Jamaica que, em vez de gastar dinheiro em promoção num ano em que não haveria visitantes, investiu em cursos de requalificação, especialmente para a mão de obra de resorts que atende turistas estrangeiros. Merece ser citado ainda como a gestão da pandemia na Nova Zelândia mexeu com o branding do país inteiro... É lugar em que todo mundo inteiro quer morar, porque é seguro e bem administrado. Esse caso mostra que turismo não é independente da gestão pública, que você estraga muito fácil a imagem de um destino se não levar em conta os outros aspectos. No Brasil, foi bonito ver que, quanto menor o destino, mais as comunidades se engajaram para preservá-lo, com redes de apoio para a comunidade não se desestruturar enquanto o turismo não é retomado. Cabe uma menção ao papel das companhias aéreas, que transportaram equipes médicas e vacinas. Mas não há outros grandes destaques.