Você que está aí louco para viajar já parou para pensar desde quando usamos malas e mochilas? Voltei ao tema durante o distanciamento social enquanto observo meus itens de bagagem acumulando pó no armário. E algo que hoje nos parece tão comum tem uma história longa, mas uma evolução recente.
Sabia que as rodinhas nas malas surgiram apenas em 1970 e a invenção seria patenteada só em 1972? Como sempre, um problema levou à inovação: vice-presidente de uma fábrica de malas em Massachusetts (EUA), Bernard D. Sadow (1925-2011) voltava de férias com a família e intrigou-se com a dificuldade de carregar a tralha toda. Quando viu um funcionário do aeroporto empurrando um carrinho, enxergou a solução: aplicar o mesmo princípio. Não sei você, mas eu fui ter minha primeira mala com rodinhas lá pelo final dos anos 1990 — a criação demorou a se popularizar.
Fiz uma viagem bem mais comprida no tempo e encontrei numa edição antiga do diário português Jornal de Notícias um resumo sobre a origem das primeiras malas descrito no livro A História das Coisas, de Pancracio Celdrán. Os egípcios, sabe-se, foram pioneiros em viajar e iam pelo mundo de então carregando arcas, caixas e baús pesadíssimos. Logo descobriram que o volume poderia ser mais prático com o uso de peles de animais para confeccionar alforjes, mais leves, porém frágeis. E as bagagens evoluíram para caixas de madeira cobertas de couro untado com gordura animal para impermeabilizá-las ou para sacos e bolsas de couro. Quer dizer, dependia: os pobres viajavam com sacos e bolsas de couro; os ricos seguiam com arcas e baús carregados por criados.
Muito tempo se passou até que o tamanho e o peso diminuíssem: no século 19 começaram a ser fabricados recipientes com fibra de linho e cana prensada, cobertos de tela e reforçados de ripas de madeira encurvada. Depois apareceu a mala de ripas de madeira fina, coberta de fibra vulcanizada, pintada e envernizada. Na sequência, para encurtar, vieram o zíper, o nylon e as fibras artificiais, revolucionando os artigos de viagem. A limitação de peso imposta pelos roteiros aéreos encarregou-se do resto, e produtos sintéticos leves, aliados ao design, nos trouxeram até hoje.
Uma tentativa recente de tornar as malas mais inteligentes, com localizador, cadeado digital, carregador de baterias, balança integrada, além de facilidades como alertas de distâncias, itinerários e status de viagem, esbarrou numa questão de segurança: as baterias foram vetadas a bordo de aviões.
Pandemia
O fato de a minha e a sua mala estarem no armário é um indicador do que esse segmento tem sentido na pandemia: foi um dos mais atingidos com a interrupção das viagens, com queda entre 45% e 55%. O que não tira o otimismo de quem trabalha no ramo.Gerente-geral da Samsonite Brasil, Nardeli Gedro acredita que o setor estará entre os que emergirão da crise mais fortes:
— Não dá para dizer que o pior já passou. Ainda temos uma elevada dependência das vacinas, mas os países que já evoluíram nesse processo tendem a ter um terceiro ou quarto trimestre com crescimento muito vigoroso. A história dos últimos 14 meses, eu resumiria em três palavras: dificuldade, estabilidade e recuperação.
Fundada em 1910 nos Estados Unidos pelos irmãos Shwayder, a Samsonite é uma das mais antigas fabricantes e uma das líderes globais do segmento, presente em mais de 120 países — no Brasil é distribuída desde 1974, inaugurou sua primeira loja em 2012 e oferece três das nove marcas que estão sob o guarda-chuvas da holding (Samsonite, American Tourister e Xtrem).
A seguir, os principais tópicos da conversa com Nardeli:
Baque inicial
"Muita gente fala que o setor aéreo foi o mais impactado. Depende. O setor de marcas que trafegam nesse universo de viagens foi ainda mais impactado. Quando tudo isso passar, a nossa indústria vai ser a terceira na linha de recuperação. A Samsonite viveu desde a Revolução Soviética, passando pela Gripe Espanhola, a Primeira e Segunda Guerra, revoluções, todo o processo de ditaduras no Cone Sul, a redemocratização. A marca tem um histórico de lidar com as coisas das quais não se tem certeza do alcance. No caso da pandemia, o primeiro movimento foi entender que significava um risco grande e exigia uma tomada de decisão muito austera. Readequamos nosso negócio mundialmente. Entendemos que o setor de viagens sofreria horrores e, antes de muitas empresas, fizemos uma redução de estrutura. Nosso principal canal de distribuição são as lojas multimarcas, não as lojas próprias. E estamos dando muita força para esses clientes terem uma condição melhor de sobrevivência."
Viagens represadas
"Existe um represamento de projetos de viagens. Esse setor vai se recuperar como nunca. Se perguntar para qualquer pessoa o que faria se a pandemia acabasse hoje, nove em 10 diriam que iriam visitar alguém ou viajar para qualquer lugar. O brasileiro tem um otimismo natural: quando houver segurança, vai haver uma debandada grande. Nós nos preparamos para isso: não interrompemos a cadeia de abastecimento, nosso portfólio está adequadíssimo e o que a gente vê no mercado é que pode até haver falta de produtos no quarto trimestre do ano."
Tendência e produtos
"Houve uma mudança de comportamento dos consumidores. Ao não poderem viajar ou terem as viagens restringidas, as pessoas encontraram uma maneira de viajar no próprio país. Percebemos que elas começaram a viajar de carro, e a mala para isso não é a mesma do avião, é uma mala que a gente chama de soft, de tecido, e é grande. Estamos tendo desempenho excelente da mala grande para viagens de carro e de ônibus. Depois, houve aumento de vendas de bolsas usadas para compor o porta-malas com a mala rígida."
Inovação e sustentabilidade
"Na adequação do portfólio, estamos focando em inovação: tecidos antimicrobianos e projetos de co-branding. Adequamos os produtos à necessidade momentânea (mala grande e bolsa) e preparamos um produto com mais inovação, que também atende a essa nova demanda, como os antimicrobianos. O caminho é uma smartmala/smartluggage, com materiais sustentáveis. Mas não basta ser um material sustentável, tem de ter valor percebido pelo consumidor. A Samsonite tem um produto que alia leveza com durabilidade. Temos malas que se abrem com digital e não usam baterias. O que há pela frente: materiais sustentáveis com tecnologia. Ainda não temos um projeto de reciclagem, mas oferecemos uma garantia global. Nós entendemos que uma das melhores maneiras de ser sustentáveis é oferecer um produto com vida muito longa".
Uma viagem mais leve
O jeito de viajar do casal Doris e Rui Spohr ao longo de 60 anos ilustra um pouco essa história. Ao embarcar para a lua de mel rumo ao Uruguai, em 4 de fevereiro de 1960, além da imensa alegria que a foto revela, eles carregavam uma bagagem à altura: só a nécessaire dela pesava uns cinco quilos, recheada de enormes embalagens de vidro, e cada um levava uma mala grande. Era a primeira viagem internacional de Doris, hoje com 83 anos.
Em 2017, na última viagem à Europa, a bagagem do casal, ícone da moda gaúcha ao longo de décadas (Rui morreria em 2019, aos 89 anos), era de levíssimo polipropileno e quatro rodízios. A nécessaire havia sido abolida há muito. Confeccionada por um artesão especialmente para Doris em couro azul marinho, aquela da lua de mel era tão pesada que deixava o braço dormente. A mala também era avantajada e nela havia roupas para praia e cidade, além das várias camisolas de seda pura bordadas e chambres combinando. Mais do que peso, não se podia perder o estilo.
A bordo do roteiro por Espanha e Portugal, Doris levava apenas uma bolsinha com o básico, além de documentos e da inseparável caderneta para anotar endereços, despesas e os highlights do dia. Na mala despachada, cremes e perfumes ocupavam práticas embalagens plásticas.
E Doris dá uma dica que não custa repetir: o que vai na mala depende do tipo de viagem, mas os excessos devem ser banidos em qualquer circunstância. Assim como no retorno ela não precisa estar mais pesada:
— Nunca gostei de fazer compras e sempre sugeri que as pessoas só comprem fora do Brasil o que não existe aqui.
Se tivesse que definir o modo de viajar hoje, a palavra seria simplificação. No avião, ônibus ou carro, roupas confortáveis, não muito esportivas, já que ela não é adepta do gênero. Na mala, um pretinho básico sempre, para um jantar, show ou teatro. Nada de joias, mas bijuterias elaboradas e echarpes coloridas. Afinal, o peso diminuiu, mas o estilo da lua de mel não precisa ser esquecido.