Uma série de, digamos, coincidências está dando forma à Casa de Cultura Juarez Teixeira (CCJT), em Caçapava do Sul, com inauguração prevista para outubro. É que, um ano e meio atrás, o médico Juarez Teixeira, 79 anos, vendeu a fazenda da família, a Dom Leonardo, e levou para uma casa na cidade centenas de peças armazenadas ao longo dos últimos anos. Quase ao mesmo tempo, o cirurgião-geral formado pela Universidade Federal de Santa Maria aposentou-se. Em março do ano passado, a pandemia que segue nos assolando pegou de surpresa em Caçapava a filha do médico, a jornalista Gisele, que mora em Buenos Aires e visitava os pais. Ela optou por não retornar à Argentina e começou a ajudar o médico a analisar os guardados.
— Com tempo sobrando, começamos a abrir as caixas, enquanto o pai me contava a história de cada objeto. Em cada gaveta, uma preciosidade. Tanto ele quanto o seu acervo me falavam sobre um estilo de vida e cultura que não existem mais e sobre saberes e ofícios que, se ainda sobrevivem, estão em vias de desaparecer. Decidimos que era o momento de compartilhar esta coleção de objetos, com forte valor cultural, com a comunidade — descreve Gisele.
Assim, aos poucos, ganhava corpo a ideia de reunir os mais de 500 objetos dos séculos 19 e 20 na casa cheia de memórias onde o médico e sua esposa, Zaira, 78, moraram nos primeiros 10 anos de casados e onde nasceram os três filhos — além de Gisele, a fisioterapeuta Gislaine, que mora no Rio, e o médico Leonardo, residente em Cachoeira do Sul.
Nos nove ambientes que reproduzirão uma casa antiga já está montado o quarto do casal (o mobiliário que pertenceu a Rubem e Zélia Teixeira, pais do proprietário da CCJT, passou por três mudanças de carreta “sem um arranhão”) e haverá ainda o das crianças e uma sala de jantar, além da sala das costureiras, a de som e imagem, dos ofícios masculinos, um “corredor das relíquias” e uma mini galeria de arte. O galpão, com a cozinha, e um pátio cultural, junto à casa, se incorporarão também.
Não foi preciso muito além do envolvimento e do trabalho (árduo e quase diário) da família para iniciar a montar as exposições: a casa havia sido reformada para abrigar uma clínica médica e os banheiros até já haviam sofrido adaptações para acessibilidade – uma mão de tinta aqui e ali e, ao final, um tapa na fachada deixarão tudo mais bonito. Eles contam com a assessoria do produtor cultural e professor de história João Timotheo Esmerio Machado, do designer de interiores Luiz Antônio Beck e de restauradores e artistas locais.
Não se pense que Juarez Teixeira é neófito em armazenar, preservar e divulgar memórias das lidas campeiras e do cotidiano daquela região: ele tem dois livros publicados – Caçapava, um Olhar Sobre o Século XX, de 2016, e Parando Rodeio nas Lembranças, de dezembro de 2020. Gisele também é afeita ao tema: é especialista em gestão e salvaguarda de patrimônio cultural imaterial.
— Cheguei a pensar em doar tudo ao museu da cidade, mas ali não caberia 10% do que eu tenho — avaliou Teixeira, que está usando recursos próprios para a sua Casa de Cultura.
Além do acervo pessoal do médico e pesquisador, a equipe tem se deliciado com doações de moradores: um radiotécnico que trabalha na cidade há mais de 50 anos doou 15 equipamentos variados; na semana passada, chegou um “baralho” de antigos calendários de casas comerciais que sequer existem mais em Caçapava; cartas e fotos do início do século 20; um órgão da década de 1930, da Igreja Matriz, e um piano de um século, “ressuscitado” por Teixeira, ganharam sua salvaguarda, assim como um baú que preservou os vestidos de noivas de quatro gerações de uma família local. Os idealizadores cogitam ainda receber objetos para mostras temporárias, por empréstimo, para que saberes e histórias não se percam.
— É preciso ter respeito com a memória das pessoas. Essas peças contam histórias — pontua Timotheo, que já organizou nove acervos do gênero e diz nunca ter encontrado um tão preservado, já que tudo funciona.
Quando a Casa de Cultura estiver aberta, será colocado no ar um site interativo reunindo o acervo. Oficinas e eventos devem se somar à visitação para dar mais vida a esse sonho familiar. Juarez Teixeira promete estar ali, não abrindo e fechando as portas, mas dando informações sobre as peças que ele conhece como ninguém.
Para visitar também
Caçapava do Sul, na Região Central, fica a cerca de 260 quilômetros de Porto Alegre. Confira outras atrações:
Centro Municipal de Cultura: abriga a Biblioteca Pública, o Arquivo Histórico Municipal e o Museu Lanceiros do Sul (retrata pré-história e povos indígenas, o cotidiano, as revoluções e guerras e a escravidão)
Forte de Dom Pedro II: começou a ser construído a partir de 1848 para a proteção da fronteira e nunca chegou a ser concluído nem usado. Tombado pelo Iphan, é o único forte em pedra do Estado
Minas do Camaquã: datada de 1865, a mina de cobre é um dos principais atrativos turísticos. Fica a 73 quilômetros do centro da cidade. A barragem João Dias fica em meio a paredões rochosos e mata nativa
Unidade de Conservação Cascata do Salso: queda d’água com mais de 20m de altura. Na parte superior, fica a barragem de cimento da antiga hidroelétrica. O acesso é a partir da Estrada da Aviação, em trajeto de oito quilômetros.
Parque Natural Municipal da Pedra do Segredo: administrado pela agência Flor do Tuna, tem trilha autoguiada e sinalizada, mas a caminhada de cinco horas também pode ser feita acompanhada por guias treinados.
Pousada Olival Vila do Segredo: aberta ao público em janeiro, oferece visitação guiada ao olival e degustação.
Pousada Chácara do Forte: opção mais simples para quem quer ficar hospedado perto da cidade. Oferece trilhas e cascata.
Olival Prosperato: começou sua produção no município em 2013. Tem empório e lagar no Km 327 da BR-290, na Vila Progresso.