Daqui a 83 anos, se ainda houver vida neste planeta em ebulição ou se outras tragédias não tiverem sido maiores, as crianças estudarão a enchente de 2024 como a nossa geração estudou a de 1941. O tempo que nos separa daquela que era a maior enchente de Porto Alegre é a idade dos meus tios trigêmeos, que nasceram lá no interior, fizeram aniversário no sábado e nunca viveram nada parecido com o que estamos passando agora.
Esses detalhes que hoje não saem da nossa cabeça serão apagados pelo tempo, mas o jornalismo terá deixado o registro do que foram esses dias de maio, um mês em que o veranico deu lugar à sequência de tempestades e o outono de folhas amarelas foi engolido pela visão de casas submersas até o telhado, árvores arrancadas pela força das águas e famílias aglomeradas em abrigos sem perspectiva de voltar para seus lares.
Com transmissão ininterrupta, a Rádio Gaúcha fez o registro mais abrangente que se terá de como tudo aconteceu. Nossos repórteres ficaram ilhados muitas vezes, chegaram a lugares em que só foi possível com a ajuda dos homens das Forças Armadas ou na carona de barcos particulares.
A enchente de 2024 arrasou pela segunda vez, em oito meses, cidades que recém estavam começando a se reerguer. Veio mais forte e com maior poder de destruição. Arrastou a ponte de Santa Teresa, voltou a encobrir Muçum, destruiu boa parte do que restara de Roca Sales, transformou Encantado num lago, isolou Arroio do Meio e o Taquari chegou a Lajeado com fúria sem precedentes.
Na enchente de 2024, lerão as crianças do futuro, a ponte do Taquari na BR-386, em Lajeado, ficou completamente submersa. As casas e lojas que ficavam à beira do rio, em Lajeado e Estrela, foram cobertas pela água. Mas foi quando chegou a Cruzeiro do Sul que a violência do Taquari se fez mais aterrorizante. Destruiu mais da metade da cidadezinha, fazendo parecer que ali tinha caído uma bomba nesta guerra da natureza contra o homem.
E o Taquari seguiu em frente arrombando as margens, destruindo pontes, alagando cabeceiras. Porque choveu como nunca em diferentes regiões, a água do Jacuí veio do norte, deixando estragos por onde passou. Encobriu a ponte que separa Espumoso de Tapera, desalojou pessoas e seguiu rumo às barragens do Passo Real e do Salto do Jacuí, que tiveram de abrir comportas para não explodir.
Descendo com uma fúria singular, o Jacuí foi alimentado por afluentes que já tinham sigo engordados pela chuva sem fim, e isolado cidades da região Central e do Vale do Rio Pardo. Quando chegou à Região Metropolitana, para desaguar no Guaíba, encontrou-se com outros irmãos da tragédia: o Sinos, que deixou São Leopoldo de baixo d’água; o Caí, que arrasou São Sebastião e Montenegro; e o Gravataí, que desfigurou Canoas.
Porto Alegre, supostamente protegida pelo Muro da Mauá e pelos diques, dormiu relativamente tranquila na noite de 2 de maio, mas despertou no dia 3 com a notícia de que a água começara a entrar por alguma fresta na Avenida Mauá. Registrei no ar o alagamento da Rua João Manoel na esquina com a Siqueira Campos, enquanto a repórter Kathlyn Moreira contava da força da água entrando pelos bueiros na altura da Carlos Chagas.
Às 10h daquela sexta-feira, o Mercado Público foi fechado porque o risco de ficar submerso era iminente. Saí às pressas e acompanhei pela Rádio Gaúcha e pela RBS TV o alagamento de todo o Centro Histórico. A Praça da Alfândega virou um lago que refletia as imagens dos prédios históricos do Museu de Arte do Rio Grande do Sul e do Memorial. As sedes das principais federações empresarias ficaram debaixo d´água.
Naqueles dias, Porto Alegre também foi invadida pelo que de melhor se viu nesta tragédia: a solidariedade. Veio gente de todos os lados para resgatar pessoas que pediram socorro das sacadas e dos telhados, agarradas aos filhos e aos animais de estimação. Não foram um nem dois. Foram centenas, depois milhares, resgatados em barcos, botes e jet skis. Chegavam aos pontos de resgate gelados, famintos e com sede. E eram acolhidos por voluntários que os levavam para os abrigos organizados pela prefeitura, pelo Estado e por instituições privadas solidárias.
Clubes frequentados pelos ricos viraram porto seguro para os desabrigados, central de doações e distribuição de roupas, comida e material de higiene. Foi preciso improvisar espaços para os animais, que chegavam em todos os barcos, junto com seus donos ou sozinhos, recolhidos pelos voluntários.
Uma onda gigante de solidariedade se formou em todo o Brasil e, mesmo de outros países, está chegando ajuda humanitária. Porto Alegre passou dias e dias praticamente isolada, com saída apenas por Viamão. O Aeroporto Salgado Filho foi tomado pela água e não tem previsão de reabertura.
Duas semanas depois, foi preciso derrubar um dos portões do Cais Mauá para que a água represada começasse a voltar para o lago. Hoje é 18 de maio e seguimos alagados. Meu bairro está sem fornecimento de água há 15 dias, mas não tenho do que reclamar: isso não é nada perto de quem perdeu tudo.