Desde a campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro nunca escondeu que, na sua agenda, a cultura é uma questão de segunda linha. Com a nomeação de Roberto Alvim para a Secretaria Especial de Cultura, agora apêndice do Ministério do Turismo, o governo escancarou seu desprezo pela área em geral e pelos artistas em particular, por considerá-los esquerdistas, comunistas e inimigos da família.
Apesar de dramaturgo, Alvim era um ilustre desconhecido fora do seu círculo, até virar ídolo da ala mais radical do governo, quando atacou a atriz Fernanda Montenegro, 90 anos. Sórdida foi a palavra usada para definir a atriz por ter posado para a revista literária Quatro Cinco Um vestida como uma bruxa prestes a ser queimada em uma fogueira com livros.
Repudiado por artistas e intelectuais pela grosseria com que se referiu a uma das atrizes mais queridas e premiadas do Brasil, Alvim cresceu no conceito do presidente, dos filhos e dos soldados mais aguerridos do bolsonarismo. A partir de agora, será o algoz da grande dama do teatro brasileiro a dar as cartas na Secretaria da Cultura.
Acima dele, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, denunciado pelo Ministério Público por supostamente comandar um esquema de candidaturas laranja no PSL.
Quando extinguiu o Ministério da Cultura, Bolsonaro apresentou a mudança como parte do pacote de enxugamento da máquina pública, e entregou ao ministro da Cidadania, Osmar Terra, a responsabilidade pela área. Terra nomeou para a Secretaria da Cultura um homem comprometido com o setor, o gaúcho Henrique Pires, o que parecia indicar que esse segmento seria tratado com o devido respeito.
Essa impressão durou pouco. Pires entrou em conflito com Terra e foi demitido em agosto. Fora do ministério, expôs as divergências com Terra, que incluíram censura, veto ao financiamento de filmes de temática homossexual e uma cobrança por não ter impedido a escolha de Chico Buarque, desafeto do presidente, como vencedor do Prêmio Camões de Literatura.
Iniciativa conjunta de Brasil e Portugal, o Camões dá ao vencedor um prêmio em dinheiro de 100 mil euros e um diploma que o presidente português já assinou, mas Bolsonaro se recusa a firmar por birra.
De lá para cá, uma sucessão de atos do governo mostra que o governo não compreendeu a importância da indústria da cultura, nem dá a mínima para os empregos que ela gera. A expressão mais repetida nas redes sociais bolsonaristas é "acabou a mamata", referindo-se às restrições da Lei Rouanet, como se as leis de incentivo à cultura não passassem de um instrumento de enriquecimento de artistas.
Mesmo com todas as concessões feitas por Terra, que se rendeu à agenda conservadora de Bolsonaro, o Ministério da Cidadania perdeu a Cultura sem uma justificativa plausível. Na versão oficial, seria apenas uma questão de afinidade com o Turismo. Quem conhece as entranhas de Brasília sabe que o motivo é ideológico. Terra perdeu poder por não ser suficientemente alinhado com a pauta evangélica e por não desfrutar da confiança integral do círculo íntimo de Bolsonaro, como atestam os diálogos do presidente com o deputado Alexandre Frota à época da montagem do governo, divulgadas agora que o ex-ator rompeu com o governo e migrou para o PSDB.
Aliás
É sintomático que Jair Bolsonaro tenha escalado Osmar Terra para representar o Brasil na posse do presidente argentino Alberto Fernández, depois de ter esvaziado seu ministério. Bolsonaro se recusa a prestigiar Fernández e Cristina Kirchner.