Das coisas bizarras que circulam na internet, uma das mais reveladoras da pobreza de espírito diz mais ou menos assim (para atacar as leis de incentivo à cultura): "Eu já precisei de médico, de dentista, de engenheiro, de advogado... mas nunca precisei de artista". Fico a imaginar do que se alimenta uma pessoa que despreza os artistas. Será que essas criaturas nunca se emocionaram com um filme? Não ouvem música? Não apreciam um belo quadro? Jamais foram ao circo? Não leram um bom livro? Não aplaudiram uma bailarina?
Pois eu preciso dos artistas com mais frequência do que de profissionais de qualquer outro ramo. Podemos não gostar deste ou daquele estilo, mas o que seria um mundo sem música? Sem pintura? Sem literatura? Sem escultura? Sem malabarismo nas esquinas? Sem cinema? Sem teatro? Sem novela? Sem dança? Sem museus? Prefiro não imaginar. Mais fácil acreditar que quem diz não precisar de artistas é apenas um produto da miséria intelectual que ganhou visibilidade nas redes sociais ou da frustração de jamais ter recebido um aplauso.
Tive uma infância de escassos contatos com a arte. Criança, ficava extasiada com os tocadores de gaita e de violão. À noite, sentávamos diante de um velho rádio para ouvir aquelas duplas que cantavam a vida no sertão (Pedro Bento e Zé da Estrada, Zé Fortuna e Pitangueira, Tião Carreiro e Pardinho). Teixeirinha era ídolo na minha aldeia, cantando coisas que falavam ao coração dos homens do campo, como O Colono ("Não ri seu moço daquele colono/ agricultor que ali vai passando/ é um brasileiro da mão calejada/ de sol a sol vive trabalhando/ ele não veio aqui te pedir nada/ são ferramentas que ele anda comprando..."), Tropeiro Velho ou Tordilho Negro. Na Rádio Ibirubá, Roberto Carlos cantava "Debaixo dos caracóis/ dos seus cabelos/ um soluço e a vontade/ de ficar mais um instante...". Só muito tempo depois vim a saber que o rei não cantava para uma donzela de cabelos crespos, mas que aquela era a canção do exílio de Caetano Veloso. Esse mesmo Caetano que não canso de ouvir cantando Un Vestido y un Amor em versão melhor do que a de Fito Páez.
Minha carreira de artista começou e terminou aos sete anos, numa encenação na escola São Judas Tadeu. Escalada para o papel de Chapeuzinho Vermelho, desisti no primeiro ensaio quando soube que o lobo (Moacir Soares) seria esfaqueado pelo caçador e, de um saquinho cheio de Q-suco de groselha, jorraria o sangue cenográfico.
Nunca atuei, mas tornei-me admiradora dos atores e atrizes. No dia em que tive a oportunidade de abraçar Fernanda Montenegro, a sensação foi semelhante à da epifania de ver no Museu do Louvre os quadros de Nossa Senhora que conhecia pelas reproduções chamadas de "santinhos" distribuídas pelo padre na igreja da Volta Vitória em que fiz a Primeira Comunhão.
Adulta, colecionei os fascículos de Os Mestres da Pintura, juntei trocados para comprar As Obras-Primas da Literatura. Poupei para ver os shows de Chico Buarque em Porto Alegre e comprar todos os seus discos. Fui ao Rio só para ver Paulinho da Viola. Aproveitei um sábado de folga para visitar o Museu Nacional de Shanghai (em vez de ir às compras na primeira viagem à China). Chorei de emoção assistindo à Filarmônica de Berlim regida pelo maestro Claudio Abbado. Vi A Bela e a Fera (na Broadway, no Gigantinho, no cinema e na escola dos meus filhos). Encantei-me com o teatro Kabuki em Kioto, com o flamenco em Barcelona, com os cantores de fados no Bairro Alto, em Lisboa. Levei minha filha adolescente para conhecer um espetáculo de tango um dia depois de termos aplaudido a Filarmônica de Buenos Aires no Teatro Colón. Tenho o Margs como um dos lugares mais sagrados de Porto Alegre. Dedico parte das minhas férias a visitar museus, gosto de novelas, adoro cinema, tenho paixão por bons livros.
Poderia viver sem artistas? Talvez, mas a vida seria completamente sem graça.