O 4º Distrito de Porto Alegre sob as águas, guarda poucas semelhanças com a zona de chácaras, descrita por Auguste de Saint-Hilaire no século 19, como “bucólica” e de “aprazível passeio”. Ninguém passa incólume, de barco, por esse "passeio". Hoje tradicional polo de inovação, gastronomia e cultura da Capital, a área na Zona Norte sofre sua maior tragédia.
Durante três horas, na manhã de ontem, GZH percorreu de bote alguns dos principais pontos da região que, nos últimos anos, atraiu empresários, artistas, arquitetos e pensadores da indústria criativa na Capital. Gente que apostou que, a partir do passado, se construiria o futuro. E que, hoje, observa o Guaíba tomar conta de tudo.
O 4º Distrito é uma espécie de junção aquática entre o Humaitá, onde fica a Arena do Grêmio, o Sarandi, imenso bairro inundado, e o Centro Histórico, onde o lago abocanhou parte da cidade. Saímos de bote a remo eu, o fotógrafo Jefferson Botega, Demétrio Luis Guadagnin, pesquisador do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e seu filho velejador Teodoro, da Rua Sete de Abril, em frente ao Zaffari da Cristóvão Colombo.
Ao lado dos casarios do Vila Flores, importante centro cultural da cidade, encontramos Sônia Maria Fernandes Rodrigues, 75 anos. Da janela do prédio de dois andares, a mulher, que já venceu alguns cânceres, justifica porque é atualmente uma das poucas moradoras que decidiu ficar:
— Tenho meus 15 gatos. Como vou sair?
Perto dali, Lourdes Rodrigues Fritz e Jessica Dutra conseguiram um bote para resgatar o pouco que sobrou na casa dos tios: ela tem 78 anos, ele, 81. Saíram quando a água subiu de repente pela Rua São Carlos.
— Pegamos uma TV, o ventilador, e a caixa de remédio deles — conta Lourdes. — A gente sempre ouviu falar da enchente de 1941, era a marca no Mercado, mas nunca a gente imaginou que a água ía pegar toda essa área.
Estico o olhar por sobre o portão do Vila Flores. Observo um monte de lixo misturado à água do que outrora fora um quadrilátero do renascimento cultural dessa região. Os ateliês foram atingidos. Se o 4º Distrito é a alma de Porto Alegre, hoje, ela está ferida.
A história da região começa com um caminho. Em 1824, quando os imigrantes alemães recém-chegados ao sul do Brasil começavam a ir para São Leopoldo, um grupo deles resolveu ficar na estrada do Caminho Novo, erguer casa e instalar oficinas por ali mesmo. O 4º Distrito é a primeira semente de indústria da capital gaúcha.
Próximo da Estação Florida, na Avenida Farrapos, a água atinge a altura dos assentos. Improváveis vozes infantis irrompem a nossa esquerda. Um grupo de crianças nos acena de uma janela no primeiro andar de um prédio. Do outro lado, um rapaz, no quarto piso, calcula que está há 11 dias ilhado. Outro, no primeiro andar, avalia que ainda tem comida. Diariamente, eles recorrem aos socorristas que arremessam garrafas até eles. Como o Guaíba teima em recuar lentamente, um dos homens pretende deixar seu apartamento nos próximos dias.
— Não aguento mais — diz.
Ao longo do caminho, há dezenas de estabelecimentos com as portas arrombadas - pela pressão da água e também pela ação de saqueadores. Remamos por quase uma hora pela Avenida Farrapos. Manchas de óleo se sobressaem na superfície marrom da água. Quase na esquina com a Avenida Sertório, com o sol do meio-dia refletindo na água, vemos dezenas de garrafas plásticas na superfície. À esquerda, em uma cena inusitada desses dias surreais, em uma mecânica com as portas escancaradas, um Camaro branco paira sobre as estruturas de ferro do macaco hidráulico um metro acima do nível da água. Perto da Cairú, há vários carros submersos. Na altura da Igreja São Geraldo, os degraus estão debaixo d'água.
A Estação Farrapos-Ipa da Trensurb é uma espécie de entreposto de barcos que vêm das zonas Norte e Leste em direção ao Centro. Como alguns séculos atrás. Barqueiros se cumprimentam. Voluntários de jet ski trocam impressões sobre a profundidade no local. Até funcionários da Trensurb descem na estação.
As portas da estação estão entreabertas. Um pedaço de concreto vira terra firme por onde é possível caminhar seguro por cerca de cinco metros. Estica-se o olhar por onde a Farrapos dobra em direção ao Aeroporto Salgado Filho. Para quem vai viajar de avião, aquela é talvez uma das últimas memórias de quem parte de avião de Porto Alegre. Na direção do aeroporto, até onde a vista alcança, não há terra firme. Só água barrenta.
Cruzamos por baixo da estação da Trensurb, rumo à Travessa São José: o Instituo Caldeira, importante polo de inovação, e, ao final da rua, o Shopping DC, e a antiga fábrica de tecidos Guahyba e sua torre. Aqui, nosso guia, Demétrio, indica profundidade de 1 metro e 90 centímetros, algo que já percebíamos pelas placas de trânsito muito próximas, ao alcance das mãos.
Nos últimos dias, os empresários do 4º Distrito se reuniram e decidiram criar uma associação. Temem pela segurança da região. Muitos acreditam que, onde a cidade nasceu, pode estar, escondida, a semente de uma nova Capital, a melhor versão que Porto Alegre pode ter.