Os faróis dos carros desenham efígies nos muros, fachadas e marquises da porção de Porto Alegre engolida pelo Guaíba. Ora são seres humanos reais, errantes pelos bairros Menino Deus, Cidade Baixa e Centro Histórico. Ora são estátuas que, nas trevas da Capital atormentada por sua maior tragédia ambiental em 83 anos, provocam pequenos sustos.
São 23h de quinta-feira, 9 de maio de 2024. Desde sexta-feira (3), a CEEE Equatorial mantém desligada, por motivos de segurança, a rede nas áreas alagadas. Com o passar dos dias e a elevação das regiões inundadas, o breu foi tomando conta de parte da cidade.
Na esquina da Praça Otávio Rocha, o busto do intendente de Porto Alegre de 1924 a 1928, que dá nome à praça, parece se mover. Na verdade, é sua sombra que se movimenta sob o efeito do farol de um solitário carro que aponta lá do alto da Avenida Alberto Bins. Na Porto Alegre sob trevas, é difícil, por vezes, decifrar o que é real e o que é imaginação.
Edegar Francisco Pedroso é real. Vigilante, está acostumado ao silêncio do Centro Histórico, que só é cortado pelo barulho de brigas eventuais entre moradores de rua sob as marquises. Para ele, a novidade é o breu da tragédia.
— Quando tinha luz, tudo era calmo. Agora, com essa escuridão total, temos de estar sempre cuidando porque já tentaram saquear lojas — conta.
Com uma lanterna de dois fachos de luz, ele nos acompanha até a esquina da com a Rua Vigário José Inácio. Este é um dos novos limites impostos pelo avanço do Guaíba. A partir daqui, só de barco. A proximidade das águas faz derrubar a sensação térmica alguns graus abaixo da temperatura oficial de 17°C. Lembro da comparação que ouvi minutos antes da boca de Jorge Everton Santos, recepcionista de um hotel dos arredores.
— Parece que estamos pescando à beira daqueles rios no Interior — disse.
Comento a fala com Edegar e o fotógrafo Jefferson Botega, que se utiliza do jogo de luz e sombras para retratar uma Porto Alegre que parece ter voltado à Idade Média.
Um facho de luz aparece à esquerda iluminando os prédios da Vigário José Inácio. Ouvimos passos por entre a água. A intensidade da luz aumenta e, de repente, o vulto se revela. Trata-se de Alexandre Veleda, técnico em informática que trabalha na Galeria do Rosário. Nesta noite, ele repara alguns estabelecimentos comerciais os arredores. Recebera a ligação de uma comerciante preocupada com sua loja. Ele aponta a lanterna em direção à porta de um prédio. Alarme falso. Não há nada de suspeito.
— É triste vermos a cidade que a gente tanto ama nessas condições — diz.
Veleda volta para a Galeria. Edegar e nossa reportagem regressamos para a parte mais alta, na Praça Otávio Rocha. Há muitos sacos de lixo boiando, cheiro de podre no ar e ratos cruzando a rua.
Em outro ponto do Centro, na Elevada da Conceição transfigurada pela água e pelo inusitado trecho de brita do corredor humanitário construído pela prefeitura, ouvimos sons da noite: o motor de um barco, que vem da Voluntários da Pátria, o burburinho a partir de vultos sob o viaduto e gritos ao longe.
No Menino Deus, o giroflex das viaturas da Brigada Militar colorem de vermelho a água dos trechos inundados e a fronte de edifícios, alguns com janelas abertas. Policiais do 1º Batalhão de Polícia Militar utilizam dois drones ao longo da Getúlio Vargas alagada para identificar suspeitos. Um dos equipamentos tem sensor térmico, que permite identificar pessoas em locais de baixa luminosidade. O outro lança um facho de luz ao solo.
— Os drones permitem uma vigilância mais efetiva como indicação às guarnições que realizam patrulhamento à noite — explica o tenente-coronel Marcio Luiz da Costa Limeira, comandante do 1ºBPM.
Em poucas áreas é possível caminhar. Botega também faz decolar um drone. Do alto, à medida em que o equipamento aéreo desloca-se em direção ao Guaíba, observamos, com assombro, no monitor, Porto Alegre ser ensombreada por uma grande mancha de escuridão.