Uma bola. Uma boneca. Baldinhos de praia. Brinquedos que um dia divertiram as crianças na Escolinha Piuí, na Estrada da Arrozeira, estão agora jogados no chão sujo de barro junto ao portão que serviu de barreira aos objetos quando a enxurrada engolfou Eldorado do Sul. Da cidade de 40 mil habitantes, sobrou apenas o esqueleto: casas abandonadas às pressas, estabelecimentos comerciais fechados, muito lixo acumulado por entre cercas e, nos poucos espaços onde a água baixou, quase ninguém nas ruas.
O município cortado pela BR-116 virou uma cidade fantasma. Os poucos moradores que caminham pela área central mantêm o olhar distante. Alguns andam a esmo por entre nacos de terra entrecortados pela água. Outros aproveitam a redução tímida do nível do Rio Jacuí para tentar salvar algum pertence.
Paulo Carvalho e a esposa, Maria Isolete, caminham com meio corpo submerso até a residência para retirar a televisão e algumas roupas. Esses objetos estavam no segundo andar da casa, poupado da água, que ficou a um metro de alcançar o piso.
— Perdemos freezers, geladeira, móveis, a cama — diz Paulo, que mora há mais de 30 anos naquele endereço.
Edi Brito estica a vista, mas não enxerga a casa no final de um dos quarteirões mais engolfados pela água. Saiu com apenas duas mudas de roupa para receber abrigo na residência de uma amiga. Agora, lava uma e usa a outra. E assim vai levando a vida transformada pela força da natureza.
— A gente só tem de agradecer a Deus pela vida — diz. — Ainda tenho meu trabalho, a minha vida e a vida da minha família. Graças a Deus, ninguém morreu na água.
Edi já havia perdido a casa na enchente de novembro.
— Agora, foi a casa do meu filho com tudo novo que ele havia comprado — conta.
O cheiro de podre impera nas partes mais elevadas, como a rótula de acesso ao centro, na BR-116, transmutada em área de resgate. Ali há barracas de bombeiros, carros da Polícia Federal e da Brigada Militar. A ajuda, finalmente, começa a chegar. Entre todos os veículos, um chama atenção. Está coberto por uma lona preta amarrada a um poste, em uma espécie de barraca improvisada. Nesta tarde de quinta-feira, estava vazia.
Pitbull
Os animais são um capítulo à parte nessa tragédia gaúcha. Perto da Rua Arrozeira com a Lajeado, um grupo de seis filhotes de pitbull esfomeados disputam um tolete de carne que alguém largou ali na calçada. A mãe ziguezagueia por entre o lixo em busca de mais comida. Outros cães abandonados com coleira se aproximam de maneira dócil, como a buscar, nos diferentes estranhos que caminham por ali, seus tutores.
Depois de vários dias, Deivid Galvão foi buscar Willi, seu cachorro. A família conseguiu fugir na segunda-feira. À medida que a água subia, Willi saiu do local onde Deivid o havia deixado. Subiu no telhado. Ficou quatro dias sem comida.
— Agora, ele está bem — afirma Deivid, com o cão no colo, assustado.
No bairro Industrial, sedes de diversas empresas foram convertidas, do dia para a noite, em abrigos. Na Datacom, centenas de pessoas foram resgatadas a conta-gotas. Na Panvel, cerca de 50 também ficaram isoladas, protegidas do horror que reinava do lado de fora. Os empregados foram trazendo seus familiares e, logo, o local se tornou também um campo de refugiados. Dos cerca de 7 mil colaboradores, 900 perderam tudo.
Com o passar dos dias, a comida foi escasseando na cidade. Foi faltando água, medicamentos e alimentos. Começaram os saques. O funcionário de uma empresa relata tiros à noite entre um posto de combustível e uma revenda de máquinas agrícolas. Outro conta que viu um caminhão ser roubado do centro de distribuição de uma companhia de bebidas. A carga de cerveja foi distribuída ao longo da BR-116. Um supermercado foi invadido.
Espanhóis
Vista do alto, a cidade e o Jacuí são um só: não há diferença entre terra e rio. Até quarta-feira, não havia rotas terrestres até Eldorado do Sul. Uma estrada improvisada foi aberta. O Brasil e o mundo começaram a compreender a dimensão do que Eldorado do Sul viveu.
GZH sobrevoou de helicóptero o município na quarta-feira. Na área mais próximas ao rio, a cena mais impressionante é a de um quadrilátero com dezenas de veículos submersos: Kombi, tratores, ônibus, SUVs... É como se um gigante tivesse jogado um punhado de carrinhos de brinquedos em uma enorme bacia de água podre e os revirado. A um olhar atento, a foto, que ilustra a capa de ZH, captada pelo repórter fotográfico Jefferson Botega, revela três pessoas próximas a um ônibus.
Eldorado significa um lugar imaginário, fictício, cheio de riquezas e de pedras preciosas que, supostamente, existia na América do Sul. Pode ser interpretado como uma região repleta de riquezas, fartura, prosperidade. A lenda do Eldorado, que se fundava na crença de uma cidade repleta de ouro, cujo príncipe tinha também o corpo dourado, foi ouvida pelos primeiros conquistadores espanhóis que se fixaram, nos séculos 15 e 16, nas costas da atual Colômbia e Venezuela. Essa referência fez com que vários municípios no Brasil e em muitos países latino-americanos adotassem a alcunha como nome.
Aqui no Estado, Eldorado do Sul nasceu em 8 de junho de 1988, a partir da emancipação de Guaíba. Golpeada pela mão da natureza, na terça-feira, 7 de maio de 2024, Eldorado do Sul precisou ser evacuada totalmente. O município tal qual existiu um dia simplesmente desapareceu.