Refugiados costumam ser o primeiro contato de jornalistas com a guerra. É pelo olhar desorientado de quem carrega uma mala ou lençol convertido em trouxa de roupas que o mundo normalmente toma conhecimento do horror.
Porto Alegre, nestes dias insanos, está convertida em porto de refugiados. A rampa do Cais Mauá, ao lado da Usina do Gasômetro, é como uma fronteira que separa a perspectiva de morte iminente de uma nesga de esperança. O futuro é ainda incerto, mas, ao menos por enquanto, quem chega comemora a vitória.
Em tempos normais, a rampa em frente ao POA Gastro Bar, a estrutura arredondada que fica sobre o Guaíba, serve de pista de acesso aos bares da Orla. Hoje, é pelo concreto sujo de lama que os refugiados das águas dão seus primeiros passos em terra firme.
O aclamado pôr do sol apareceu nesta tarde de terça-feira, 7 de maio de 2024. Mas ninguém lhe prestou reverência. Os aplausos são para cada ser humano que surge no horizonte do revolto Guaíba. Kaleb Jaras, técnico de segurança do trabalho, faz questão de puxar um aplauso a cada embarcação que alcança a rampa trazendo os flagelados.
— ‘Vamo’ lá!
— Força!
— Vamos aplaudir!
Imediatamente, quem está ao redor para o que está fazendo. Várias palmas são ouvidas.
— É para dar moral para o pessoal — explica Kaleb, que exibe uma mordida de cão e uma ferida provocada por um prego no pé durante o trabalho de dias.
Uma das reverenciadas pelas palmas é Viviane Azevedo, que fugiu de Eldorado do Sul com Núbia e as pequenas Manoela, 12 anos, Isabela, sete, e a gata Maria.
— Decidimos sair depois que passaram pela nossa casa avisando que não vão levar mais comida — conta ela, que se abrigou no segundo andar da residência.
Ainda na rampa, cada aplauso faz Mauro Souza, 63 anos, e Lauren Carvalho, 33, pai e filha, esticarem o olhar. Eles foram resgatados de moto aquática no sábado (4).
Nesta terça-feira, antes das 10h, fincaram pé em frente à tenda dos bombeiros para garantir que a mãe, o avô de Lauren e sete gatos da família sejam também retirados da Ilha da Pintada. Eram quase 18h e eles ainda estavam ali.
— Falaram que está muito difícil de chegar lá. Mas, como minha mãe tem problemas cardíacos e o avô passou mal, se compadeceram de nós — diz ela.
Travessia
E segue a travessia. Alguns descem das embarcações no colo de voluntários. Os mais idosos são levados até cadeiras de rodas.
A cada aplauso puxado por Kaleb, Marcos Vieira e colegas levantam pequenos cartazes azuis com as inscrições JW ORG. São as iniciais de Jehovah’s Witnesses, Testemunhas de Jeová.
Eles estão ali como missionários na expectativa de abrigar desalojados em suas residências de forma a desafogar o sistema.
— Nossas equipes receberam, na Polônia, refugiados da guerra da Ucrânia. Nunca pensei que estaria fazendo isso em Porto Alegre — comenta Marcos.
Ali ao lado, os recém-chegados passam por uma triagem. Quem precisa de atendimento médico é examinado. O mais comum, conforme o médico Guilherme Essi, são casos de desidratação, insolação e glicose alta. O sol das últimas 48 horas reduziu os sintomas de hipotermia dos primeiros dias.
Os refugiados são identificados e recebem alimentação. Nesta tarde, o apelo entre os voluntários era por marmitas de isopor vazias. Sentada em uma cadeira, abraçada a uma pequena cadela, está Alana, 14 anos. Pergunto o nome do animal, mas a jovem diz que ainda não batizou. Na hora de fugir da submersa Eldorado do Sul, um militar pediu que ela transportasse o bicho.
— Agora, ela é minha — diz Alana.
Os animais são de todos os tamanhos. Vê-se até raças como pitbull, rottweiler e pastor alemão. Chegam sem acoar. Parecem apavorados.
Perto dali, Sandra Borba festeja com a irmã o fato de estar viva. Pudera, ela chegou a ser considerada por familiares e amigos como desaparecida. Quando os azulejos do piso da casa começaram a se soltar do chão em razão da elevação da água, ela decidiu abandonar a residência. Foi para o ginásio de Eldorado, depois para o Colégio Centro Novo.
Como ficou sem sinal de celular, muitos pensaram que ela tinha morrido.
— Tô bem viva! E vou durar mais uns cem anos! — garante.
Nesta terça-feira, ela foi resgatada junto com vizinhos. Vai ficar em um apartamento na Rua 24 de Outubro, na Capital, onde trabalha como empregada doméstica. Os amigos do bairro irão para um abrigo. Na despedida, acenam:
— Nos vemos em Eldorado.