Tudo mudou para ficar como está.
O referendo no qual a maioria dos chilenos disse "não" ao rascunho de nova Constituição, no domingo (17), sepulta um processo de quatro anos de idas e vindas de tentativas de reformar o arcabouço legal e institucional do país sacudido pela revolução de 2019.
Antes de o mundo se assombrar com a covid-19, em outubro daquele ano, os chilenos foram às ruas reivindicar maiores direitos sociais, como saúde, educação e mudanças na previdência. O "2019" do Chile chegou tardio, como o 2013 do Brasil, e as exigências dos manifestantes encontraram como resposta de um governo Sebastián Piñera contra a parede a elaboração de uma nova Constituição.
A que estava em vigor fora outorgada no apagar das luzes da ditadura de Augusto Pinochet, em 1980.
Em 2020, Piñera convocou uma consulta popular na qual os chilenos disseram que queriam a nova Carta Magna e que esta deveria ser escrita por uma Assembleia Constituinte eleita. No ano seguinte, os 155 membros foram escolhidos para a tarefa. Nesse meio tempo, Gabriel Boric, um jovem político filho dos movimentos estudantis que serviram como motor da revolução de 2019, foi eleito presidente. Tudo isso em meio à pandemia de covid-19.
O texto da nova Constituição, com forte espírito progressista, com ampliação dos direitos das mulheres, a definição de um estado plurinacional e a implantação de um sistema público de educação, saúde e previdência fora entregue em 2022. No dia 4 de setembro, a maioria dos chilenos disse "não" ao rascunho, em uma derrota fulcral para o governo Boric.
Os chilenos voltaram à prancheta - mas, sem um plano B, todo o processo que havia sido instaurado precisou ser revisto: já não se teria uma nova Assembleia Constituinte, porque, pelas regras, não se poderia eleger novos membros em um prazo tão curto. A alternativa foi a criação de um grupo de especialistas com forte viés conservador. Dos 55 membros, 33 eram de partidos de direita, a maioria ligados ao ex-candidato à presidência pelo Partido Republicano José Antonio Kast.
Voltaram à prancheta.
O novo esboço, entregue este ano, trouxe um texto, uma antítese do primeiro, defendia um modelo de Estado liberal, eliminava impostos patrimoniais pagos pelas classes mais altas, promovia um sistema educacional, de saúde e de Previdência que prejudica os setores mais humildes. Também deixava frestas para a eventual revogação da lei que autoriza o aborto em caso de risco de vida para a mãe, estupro e existência de más formações que inviabilizem a vida do feto, pelo argumento da "objeção de consciência".
O clima de "a que está aí é menos pior" dominava no domingo (17) os centros de votação, e o novo texto, ironicamente, também acabou sendo rejeitado. E também ironicamente isso foi uma vitória para Boric.
O que virá agora? Como disse na frase que abriu este texto: tudo mudou para ficar como está.
Após quatro anos, o sentimento é de cansaço. A falta de consenso é, em parte, culpa da polarização, mal político dessa esquina da história. Boric teve na primeira derrota teste para o resto de seu governo ainda no começo. Kast teve na sua própria perda um termômetro para suas ambições presidenciais.
As insatisfações que explodiram no "estallido" de 2019 permanecerão latentes até o próximo estopim. Ele virá, não duvide.
Nesses quatro anos de debate, o Chile deu exemplo ao Brasil - e ao mundo - de que é possível fazer um debate tão fundamental sobre o modelo de uma nação sem sobressaltos institucionais. Em nenhum momento, a democracia esteve ameaçada. E isso, nesses tempos, já é muito.