Chegou ao fim a lua de mel de Gabriel Boric com os eleitores chilenos. Em dois meses de mandato, o jovem presidente de esquerda viu sua aprovação despencar de 50% para 36%, enquanto dezenas de problemas se avolumam sobre sua mesa no Palácio de La Moneda, obrigando-o, por vezes, a definir medidas que vão na contramão das promessas de campanha - e de sua jornada como líder estudantil e egresso das revoltas de 2019.
Uma dessas contradições tomou lugar na semana passada em um dos temas mais delicados da política chilena - a autonomia territorial dos povos mapuches, que habitam desde períodos pré-colombianos o sul do Chile. Depois de uma onda de violência, na qual inclusive o carro da ministra do Interior, Izkia Siches, foi interceptado por manifestantes em uma estrada da região, Boric anunciou a remilitarização da área. Nas últimas semanas, os conflitos entre mapuches e proprietários de terras se intensificaram, com cortes de estradas, disparos de encapuzados e ocupações de propriedades.
Os povos originários reivindicam soberania sobre as terras de Araucânia, segundo demarcações do território antes da colonização espanhola, o que compreende zonas chilenas e também da vizinha Argentina.
A presença de soldados das forças armadas em situações de segurança pública é vista, no Chile, por si só, como atentado à democracia e às liberdades individuais. No caso de Boric é ainda mais grave porque, durante toda a campanha, ele defendeu o diálogo com os mapuches, tendo feito críticas frequentes ao pouco tato com que seu antecessor, Sebastián Piñera, lidava com a questão.
A quem mais é dado, mais é cobrado, pode-se dizer. E boa parte da cobrança sobre Boric deve-se ao preço de deixar de ser tijolo para se tornar vidraça.
Havia muita expectativa sobre seus ombros. Imerso na política chilena a partir dos protestos que exigiam a refundação do país, o político derrotou o conservador José Antonio Kast nas eleições do ano passado, com promessas de reforma do modelo neoliberal, de um Chile que ainda tem, em diferentes estruturas institucionais, heranças dos tempos do ditador Augusto Pinochet. Mas seu partido, Convergência Social, resultado da fusão dos movimentos políticos Movimento Autonomista, Esquerda Libertária, Nova Democracia e Socialismo e Liberdade, não tem maioria no Congresso - o que, por si só, já é um problema para o governo conseguir aprovar medidas. Além disso, a própria aliança interna que permitiu sua candidatura está fragmentada por facções de diferentes nuances políticas dentro da esquerda - dos mais radicais aos moderados.
E não se pode esquecer que o país está em meio a um processo de redação da nova Constituição, cujo rascunho foi entregue na semana passada e precisa ser aprovado pela população em votação em 4 de setembro. Boa parte do governo de Boric depende de fazer avançar a nova Carta Magna, mas, passados mais de dois anos das megamanifestações, não há garantias. O "não" ao texto foi maior do que o "sim", segundo pesquisas (46% a 38%).
Aliás, um dos temas polêmicos da nova Carta Magna é justamente o aumento da autonomia dos territórios indígenas.