Pouco antes de o mundo se assombrar com a covid-19, o Chile viveu sua maior revolução desde a redemocratização, com milhares de pessoas saindo às ruas para exigir maior igualdade social, em um país que foi, por anos, vitrine de políticas neoliberais na América do Sul. Um capítulo importante desse processo, iniciado no final de 2019, está prestes a ser encerrado: no próximo domingo (4), cerca de 15 milhões de chilenos estão aptos a votar, em plebiscito, se aprovam ou não a nova Constituição, redigida por um grupo de 155 membros que formaram a Convenção Constitucional.
Há vários componentes históricos nesse processo decisório. Se aprovada, a Constituição será a primeira desde a ditadura de Augusto Pinochet — a atual, rejeitada por 78% dos chilenos em plebiscito realizado em 2020, foi escrita em 1980, durante o regime militar que vigorou entre 1973 e 1990. O segundo: a nova Carta Magna reconhece a igualdade de gênero e dispõe sobre o “direito de decidir livre, autônoma e informadamente sobre o próprio corpo, sobre o exercício da sexualidade, reprodução, prazer e contracepção”. Além disso, integra os povos indígenas, estabelecendo o Chile como um Estado plurinacional, como a Bolívia.
São, no total, 10 pilares: democracia, inclusão, tradição institucional, garantias de direitos, liberdade, igualdade de gênero, proteção do ambiente, regiões, projeção futura e economia responsável.
O anticlímax de tudo isso é que, a se confirmarem as previsões das pesquisas, o texto tem grandes chances de ser rejeitado: em janeiro, o “sim” à nova Carta Magna contava com a aprovação de 56% dos eleitores, contra 37% que diziam que votariam no “não”. A partir de abril, a tendência se inverteu, com os que rejeitam a proposta contando hoje 46%, contra 37% que o aprovam.
Essa reviravolta tem vários fatores — assim como várias nuances. Por exemplo, nem todos os que desaprovam o texto rejeitam por completo seus artigos. Não há como aprovar “meia Constituição”. Por isso, é nítido o comportamento dos extremos do espectro político, normalmente barulhentos, em tentar generalizar o texto como “perfeito” ou “amaldiçoado”.
O outro ponto é a polarização: as feridas da eleição do jovem presidente Gabriel Boric, de esquerda, oriundo das manifestações de 2019, ainda estão abertas. Sua agenda política está alinhada ao resultado do texto constitucional: em resumo, maior participação do Estado nos sistemas previdenciário, de educação e de saúde e participação social de minorias, o que confronta o modelo liberal chileno que tanto ajudou o crescimento do PIB nas últimas décadas quanto intensificou a desigualdade social. A popularidade de Boric vem caindo mês a mês.
O terceiro ponto é velho conhecido dos brasileiros: a campanha para o plebiscito é marcada por fake news e desinformação em redes sociais: por exemplo, os contrários propagam que, se o projeto for aprovado, muitas pessoas poderão perder suas propriedades, o que não é verdade.
Caso o texto seja rejeitado, há plano B. Mas tudo terá de passar por renegociação entre Congresso e Executivo. E os ecos de 2019, de uma população insatisfeita, embora tenham sido silenciados por dois anos de pandemia, de tempos em tempos voltam a aparecer. Será uma semana quente no inverno chileno.