Quando a pandemia de covid-19 não havia chegado ao Ocidente, o Chile vivia um processo de erupção social que balançou os pilares do país, considerado um dos países mais estáveis da América Latina. A multidão que foi às ruas em 2019 exigindo maior igualdade social exerceu tamanha pressão sobre a classe política que culminou na promessa de uma nova Constituição. A vigente é do tempo da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
Iniciado o processo, em plena crise de saúde pública global, os chilenos foram às urnas, rejeitaram a velha Carta Magna e exigiram uma nova escrita por uma Constituinte eleita para tal. Composto o grupo e redigida a Constituição, o texto acabou sendo rejeitado em plebiscito em 2022 por 61,8% contra 38,1%.
A Assembleia Constituinte à época, a primeira com paridade de gênero do mundo, tentou introduzir uma série de inovações como a validade de um sistema judicial indígena, além de abrir caminho para o direito ao aborto e a garantia de educação, saúde e Previdência públicos. A postura combativa de muitos dos constituintes desatou uma forte rejeição de setores expressivos da sociedade.
Todo o processo foi revisto, e a expectativa é que uma nova proposta seja levada aos eleitores até o fim do ano. Um dos participantes da chamada comissão de especialistas é o sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Alexis Cortés Morales, do Departamento de Sociologia da Universidad Alberto Hurtado. Integrado por 24 pessoas, representando os diferentes partidos (da extrema direita à extrema esquerda), o grupo enviou o anteprojeto para o Conselho Constituinte, que assumiu em 7 de junho.
Cortés, que integra a comissão indicado pelo Partido Comunista, esteve este mês em Porto Alegre, em palestra no Instituto Latinoamericano de Estudos Avançados (Ilea, UFRGS), falando sobre o processo constitucional chileno. Nesta sexta-feira, direto de Santiago (Chile), ele conversou com a coluna sobre os próximos e desafiadores passos que os chilenos precisarão dar para chegarem a uma nova Constituição
Depois da rejeição em plebiscito da nova Constituição, em que momento está o processo de se escrever uma nova Carta Magna?
Depois da rejeição da proposta da nova Constituição, houve um novo acordo entre direita e centro-esquerda e a esquerda, que só deixou fora o Partido Republicano, a legenda de extrema direita. Esse acerto permitiu que se estabelecesse um novo processo constitucional, porque a campanha pela rejeição foi principalmente a direita que promovera. E havia o compromisso por parte da direita de se ter uma nova Constituição. Então, isso foi cobrado e se criou esse novo processo, que, em, no desenho, foi muito uma resposta, sobretudo da direita, ao que ela havia achado de pior no processo da Convenção Constituinte. Isso incluiu o estabelecimento de 12 bases institucionais que não poderiam ser modificadas pelos constituintes, como o reconhecimento do Estado Social Democrático de Direito, dos direitos dos povos indígenas, mas que não implicasse plurinacionalidade, três poderes claramente formados, entre outras coisas. Junto, foram estabelecidas três instâncias institucionais que seriam as responsáveis por levar esse processo adiante: uma Comissão de Especialistas, na qual eu estou, responsável por elaborar um anteprojeto constitucional; um segundo órgão, que é o Conselho Constitucional, formado por pessoas eleitas diretamente pelo povo. E o terceiro espaço, um Comitê Técnico da Admissibilidade, que é um grupo de árbitros, juristas responsáveis por resguardar que não haja violação dessas 12 bases institucionais. Hoje, estamos com o anteprojeto já entregue há quase dois meses e o funcionamento do Conselho Constitucional, que teve um período bastante curto para apresentar as emendas que procurassem modificar o texto dos especialistas. Essas emendas já foram apresentadas, já foram distribuídas, e hoje estamos em uma fase de início das discussões dos fundamentos dessas emendas.
Depois de tantas divergências, vocês estão buscando um texto de consenso entre os diferentes partidos?
Sim, o anteprojeto apresentado pelos especialistas procura que seja um acordo transversal. É um texto aceitável, embora não tenha deixado contente 100% nem a esquerda nem a direita. Mas, justamente, essa virtude do texto, que permite que todos, de alguma maneira, se sintam contemplados, embora ninguém esteja contente. O descontentamento mútuo é um sinal de que o texto pode aspirar a se transformar em um novo fato político-social, que é a Constituição. A questão hoje é que o Conselho Constitucional já não reflete o equilíbrio que se teve a Comissão dos Especialistas, porque, na eleição, houve uma grande vitória do Partido Republicano, a extrema direita,que fez campanha contra o novo processo. Eles não são favoráveis à existência de uma nova Constituição, eles querem manter a Constituição que o Chile herdou da ditadura. Dos 50, eles elegeram 22 membros. A direita tradicional tem 11. Dezessete dos conselheiros são da esquerda. Não foi eleito nenhum conselheiro de centro esquerda. Com esse quadro, o Partido Republicano pode vetar qualquer norma constitucional, porque tem dois quintos do conselho. E, junto com a direita tradicional, podem aprovar qualquer coisa, até desconsiderar as sugestões feitas pela Comissão dos Especialistas.
Temas polêmicos do texto anterior, como o Chile como Estado plurinacional, ou a legalização do aborto, ficaram de fora?
A plurinacionalidade ficou impossibilitada com as 12 bases institucionais. Uma delas estabelece que se reconheça os direitos dos povos indígenas e a interculturalidade no contexto de uma nação que é única e indivisível. Então, a plurinacionalidade não seria possível. Embora a Convenção reconheça outorgar um direito bastante explícito ao aborto, o texto constitucional do anteprojeto dos especialistas não consagra o aborto. A partir das emendas que foram apresentadas tanto pelo Partido Republicano como pela direita tradicional deixariam inconstitucionais as leis que hoje permitem a prática do aborto em três caso de debilidade do feto, risco de morte da mãe e estupro.
O que na sua opinião deu errado no processo passado?
Um dos grandes problemas era que o texto não conseguia integrar a sua proposta um setor importante da sociedade, que é a direita. A direita não tinha capacidade de vetar nenhuma norma, e um setor apostou desde o início no fracasso do processo. Por outra parte, setores sobretudo independentes, mais próximos da esquerda, também não fizeram muitos esforços por integrar grupos da direita mais propensos ao diálogo. Então, a direita foi excluída. Mas, por outro, também teve vários fatores que influíram: a convenção foi rapidamente perdendo sua própria popularidade e, embora estivesse formada por setores que não vinham da política tradicional, que não militavam em partidos, o desenho levou a um encapsulamento rápido dessa discussão. O que mais aparecia eram questões de dissenso, de desacordo, em relação à procura por entendimento. Dentro da esquerda houve, por exemplo, casos que contribuíram para o desprestígio: um grande ícone das revoltas sociais (Rodrigo Rojas Vade), que havia sido eleito conselheiro, que aparecia sem cabelo nas marchas para personificar a luta pela saúde, dizendo que sofria de câncer e que, depois se descobriu que era mentira. Isso foi um golpe forte no prestígio do espaço. Teve outras coisas como, por exemplo, a interrupção do hino nacional durante a cerimônia de inauguração, por parte também de outra participante da convenção. Tudo isso foi erodindo o prestígio do espaço. Por outro, também foi muito importante que a votação do plebiscito tenha sido com voto obrigatório. A votação, antes, no Chile era facultativa. E, por último, eu diria que os setores que a favor da nova Constituição nunca conseguiram articular, ou nunca conseguimos articular, uma narrativa que se conectasse com o senso comum. O debate constitucional é um debate muito abstrato, onde a conexão com a vida cotidiana é muito mais difícil. E para a rejeição era muito mais fácil conseguir articular essas emoções de medo. Foram muito importantes as fake news. Havia coisas que eram falsas, como por exemplo o direito à expropriação das casas das pessoas, dos fundos de pensão, entre outras coisas.
Desta vez, é uma sensação que nós temos de que a população não está participando tanto, não está tão mobilizada?
Sim, o processo sempre teve baixa expectativa e muita indiferença. A própria formação de uma comissão de especialistas, debates muito abstratos, onde a conexão com as preocupações da sociedade foi muito mais difícil. Embora a sociedade chilena, apesar do crescimento dos setores mais de extrema-direita, continue aspirando mudanças no país, ela desconfia da capacidade de respostas para que se concretize essas mudanças. Então, eu diria que os perigos que sofreu a convenção, no sentido da indiferença, do encapsulamento, são perigos que estão presentes hoje também no novo processo. É uma situaçãobastante preocupante, as pesquisas recentes mostram baixos níveis de avaliação positiva do processo, baixo nível de identificação com o anteprojeto e baixas expectativas em relação ao que poderia fazer o Conselho Constitucional, que, como órgão eleito, teria maiores possibilidades de procurar uma sintonia entre as preocupações da sociedade e os debates constitucionais.
Por isso esse seu pessimismo?
Sou bastante cético sobre as possibilidades de se chegar a uma Constituição que consiga superar todas as ameaças que estão sobre o processo. É muito difícil que o equilíbrio precário que existe no anteprojeto consiga persistir. Tenho muita preocupação em relação ao que considero a principal conquista do longo processo constitucional chileno, que é a consagração do Estado social democrático de Direito, porque muitas das propostas que as duas direitas já concordaram o tornariam inviável. Por exemplo, em matéria de saúde, seria impossível no Chile se ter um sistema de saúde universal como o que tem no Brasil. É a mesma coisa em segurança social. Por outro lado, há um bom número de emendas que são antitributação. E o Estado social democrático de Direito supõe uma maior capacidade do Estado de garantir efetivamente seus direitos. E nessas condições fica muito difícil que essa definição que existe no papel consiga se traduzir em realidade.
Quais os próximos passos?
Temos cerca de um mês para discutir e votar as emendas e, em seguida, a Comissão de Especialistas tem de fazer sugestões ao texto proposto pelo Conselho. Na sequência, o texto deveria estar pronto em novembro para ser levado a plebiscito em dezembro.