Conta o pesquisador Jared Diamond em seu mais recente livro, Reviravolta, que o economista Milton Friedman não ficou com boa impressão do general Augusto Pinochet. O ditador que transformaria o Chile em laboratório vivo das teorias liberais do professor da Universidade de Chicago falara pouco durante os 45 minutos de reunião em 1975. Dizem que fizera apenas uma pergunta. Da carta de recomendações que o norte-americano enviou ao Palácio de La Moneda, pouco foi aproveitado pelo programa dos chamados Chicago Boys, ex-alunos chilenos de Friedman que ocuparam ministérios. Já tinham seu plano detalhado em um documento apelidado de “O Tijolo”, por ser longo e pesado.
A adoção da cartilha de Friedman pelo Chile de Pinochet é até hoje tema de debate acadêmico. Governos militares sul-americanos preferiam uma economia que pudessem controlar para seu próprio benefício, em vez do livre mercado fora de seu controle. Por que o general assumira o liberalismo em estado puro? Uma possível explicação, segundo Diamond, é que Pinochet reconheceu que nada sabia sobre economia, apresentando-se como um “homem simples”, e teria achado atraentes as consistentes e persuasivas propostas dos Chicago Boys. Outra especulação dá conta de que ele teria identificado nos brilhantes discípulos de Friedman as políticas dos Estados Unidos, que os apoiavam e com quem compartilhava o ódio pelos comunistas – sem falar dos empréstimos retomados ao Chile imediatamente após o golpe de 1973.
Quaisquer que fossem os motivos, o resultado das políticas de livre mercado incluíram a reprivatização de centenas de empresas nacionalizadas por Salvador Allende, a redução do déficit público por meio de cortes de 15% a 25% no orçamento da máquina, a diminuição das tarifas médias de importação de 120% para 10% e abertura da economia chilena à competição internacional. A inflação caiu de 600% ao ano, no governo de Allende, para 9%. A economia cresceu quase 10% em 12 meses. Os investimentos externos aumentaram, o consumo disparou e as exportações se expandiram.
Essa é a parte mais conhecida da história. Há outra: os resultados espetaculares da economia tiveram dolorosas consequências. A decisão de atrelar o peso chileno ao dólar produziu déficit comercial e a grave crise econômica em 1982. Os benefícios foram distribuídos de modo desigual: as classes média e alta prosperaram, mas muitos sofreram e se viram abaixo da linha da pobreza. Diamond diz que, em uma democracia, teria sido difícil infligir um sofrimento tão disseminado aos pobres e impor algumas políticas contrárias aos ricos – ainda essa camada que fosse privilegiada, no médio prazo, com a parceria com o regime. Só foi possível sob a mão pesada da mais violenta ditadura do Cone Sul.
Da turbulência de 1982 para a crise dessa primavera de 2019 há várias diferenças: o Chile, hoje, é um país democrático, governos socialistas voltaram ao La Moneda, com Ricardo Lagos e Michele Bachelet, os números macroeconômicos de novo causam inveja aos vizinhos. Mas uma coisa não mudou nas entranhas do país mais estreito e comprido do mundo: a nação continua muito desigual. Poucos gestos traduzem com tanta precisão o abismo entre os pobres e os ricos quanto a frase do ministro da Economia Juan Andrés Fontaine, em 8 de outubro, quando a população começava a reclamar do aumento de 3,75% da tarifa do metrô em horário de pico:
– Quem madrugar será ajudado, assim, quem sair mais cedo e pegar o metrô às sete da manhã tem a possibilidade de uma tarifa mais baixa do que a de hoje.
Há ainda uma semelhança entre os anos de chumbo e a segunda década do século 21: um dos Chicago Boys responsável por implantar, como ministro do Trabalho de Pinochet, a privatização do sistema de Previdência foi José Piñera, irmão mais velho do atual presidente chileno, Sebastián Piñera.
Quando o chefe de Estado, pressionado pelos protestos e pelo número crescente de mortos, suspendeu o aumento da passagem e os manifestantes não saíram das ruas, começou a ficar claro que, a exemplo do Brasil de 2013, os protestos não eram apenas pela elevação equivalente a R$ 0,20. O arco de insatisfações sociais é largo – há quem defenda a renúncia de Piñera e uma nova Constituição para refundar o país –, mas tem como foco principal a discrepância entre as estatísticas da economia que os governantes chilenos exibem ao mundo e que provocam inveja em liberais como o ministro brasileiro Paulo Guedes e o quanto pinga de dinheiro, a cada mês, no bolso da maior parte da população.
O incensado modelo chileno estava em xeque.
A economia vem em uma sequência de nove anos consecutivos de crescimento – em 2018, por exemplo, enquanto o Brasil se esgaçava para aumentar o Produto Interno Bruto em 1,1%, o vizinho crescia 4%. Mas, quando o assunto é concentração de renda, o Chile é o quarto país sul-americano, atrás de Brasil, Colômbia e Paraguai. Com praticamente todos os serviços privados, o custo de vida é altíssimo. Por mais que tenha inflação baixa – em 2018, os preços ao consumidor aumentaram 2,4% –, a população viu, na última década, o valor do aluguel subir 150%. O aumento do preço da tarifa do metrô, que faria emergir o descontentamento latente, foi antecedido por uma elevação de 10% da energia elétrica.
O sistema previdenciário chileno é visto por analistas como um dos elementos que contribuem para a percepção de desigualdade da população. Em 1983, o sistema público de Previdência foi convertido em privado. O Chile adotou o modelo de capitalização – no qual se inspirariam, anos mais tarde, México, Colômbia e Peru, e que chegou a ser aventado pela equipe econômica de Guedes na reforma brasileira da Previdência. Grosso modo, cada cidadão poupa individualmente para bancar sua própria aposentadoria. O problema é que, quando chega a velhice, a conta não fecha. Os gastos com medicamentos e planos de saúde, por exemplo, acabam na maioria das vezes sendo maiores.
A crise na pele
O chileno Franklin Troncoso, 55 anos, proprietário de uma loja de bicicletas na cidade de Iquique, no extremo norte do país, não vê vantagens em depositar, a cada mês, 10% de seu rendimento nas chamadas Administradoras de Fondo de Pensiones (AFP, ou administradoras privadas de fundos de pensão).
– Não via rentabilidade. Se seguisse o resto de minha vida pagando, quando chegasse aos 70 anos, minha aposentadoria seria igual a se não o fizesse. Então, capitalizo por minha conta, vou juntando de forma pessoal para a minha aposentadoria. A AFP é um bom negócio apenas para os donos dela – afirmou a GaúchaZH, por telefone.
A pensão média é equivalente a R$ 1,1 mil (menos do que o salário mínimo, de R$ 1,6 mil). Franklin se preocupa com o fato de que, mesmo que os chilenos depositem dinheiro nos fundos de pensão, não podem sacá-lo de uma vez só em caso de emergência.
– Há pessoas com 100 milhões de pesos na conta. Estão doentes, vão durar poucos anos mais e não podem sacar tudo de uma vez – protesta.
Enquanto o preço do cobre está alto, o modelo (que privilegia a exportação e a não presença do estado na economia) funciona bem. No momento em que não está, fica em xeque.
LEONARDO TREVISAN
Doutor em Ciência Política, professor da ESPM-SP
Outro chileno, Cláudio Contreras, 27 anos, funcionário de uma loja em Curicó, a 200 quilômetros de Santiago, antevê problemas na velhice, a exemplo dos avós, que penam para fechar a conta ao final de cada mês.
– Como os dois estão vivos, eles juntam dinheiro e se ajudam entre os dois. Mesmo assim, é difícil, porque têm de fazer exames, têm problemas de saúde. Se compram remédios, não têm como cobrir necessidades básicas, como água e alimentos. É necessário manter as contas muito claras para chegar ao fim do mês – explica o funcionário, que deposita 12% do salário mensal na AFP.
Para o professor Manuel Agostin, da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, o governo deve reconhecer que o modelo de Previdência precisa ser modificado para beneficiar a todos, algo que nem presidentes de centro-esquerda nem de centro-direita conseguiram fazer.
Quando a economia cresce muito e a desigualdade não reduz, as pessoas se frustram. O Chile não fez o que fizeram os países desenvolvidos: elevar a carga tributária e redistribuir a renda ao mesmo tempo em que crescia.
GUILLERMO LARRAÍN
Economista, professor da Universidad de Chile
– É dramático, porque muita gente não chega a acumular nada para a aposentadoria porque trabalha no setor informal – pontua.
O pesquisador, que tem 76 anos e foi economista do Banco Mundial (Bird), dá um exemplo pessoal:
– Sofro de asma há três anos. Meu médico receitou uma série de injeções mensais com medicamentos de última geração. Custam o equivalente a US$ 3 mil por mês. Posso pagar, porque tenho seguro internacional, mas não há um chileno sequer que possa ter esse gasto.
O pacote anunciado por Piñera inclui reajuste imediato de 20% nas pensões de aposentadorias e nos benefícios sociais. Também foram previstos aumentos adicionais nas pensões de pessoas com mais de 75 anos a partir de 2021 e 2022. Na saúde, o governo anunciou a criação de um “seguro catastrófico”, que precisa ser aprovado como lei pelo Congresso. O benefício estabelece um teto ainda não especificado para gastos de saúde de famílias que enfrentam doenças. As despesas que ultrapassarem o valor serão cobertas pelo Estado. Haverá ainda subsídio que cobrirá parte dos gastos com remédios e ampliação de convênios do governo com farmácias, com o objetivo de abater o preço dos medicamentos. Como os salários da maioria da população não são suficientes para cobrir despesas comuns, estimativas apontam que 60% dos trabalhadores gastam mais do que recebem. Isso explica porque tantas famílias estão endividadas.
Na outra ponta da pirâmide social, os jovens têm exigências antigas. Em 2006, cerca de 790 mil alunos foram às ruas protestar contra o governo de Michelle Bachelet no movimento conhecido como a “Revolução dos Pinguins”, em referência aos uniformes usados por alunos do ensino secundário. Naquele ano, a morte de um estudante de 16 anos, com um tiro no peito disparado por policiais durante uma marcha em Santiago, aumentou a tensão. No Ensino Superior, não há gratuidade nas universidades públicas, e os estudantes terminam os cursos endividados.
– No final do governo de Pinochet, foi feito um modelo que, na prática, excluiu a universidade pública. É toda paga. Isso é brutalmente excludente das classes mais pobres – explica o economista Leonardo Trevisan, doutor em Ciência Política e professor da ESPM-SP.
Para evitar pedir um financiamento na faculdade de desenho, o chileno Cláudio preferiu reduzir outros gastos, em um esforço que durou cinco anos.
– Se pegasse crédito, teria de trabalhar 20 anos da minha vida para pagar pelo que estudei. Preferi estar cinco anos da minha vida forçando um pouco mais para ter dinheiro – explica ele, que recebe 400 mil pesos chilenos (R$ 2.188) e pagava, em média, 198 mil mensais pela faculdade (R$ 1 mil) .
O mal-estar econômico chileno pegou a classe política à direita e à esquerda de surpresa, segundo o deputado do Partido Comunista Hugo Gutiérrez.
– Toda a política chilena se viu surpreendida, e a direita, espantada pelo número de pessoas que está nas ruas, exigindo mudanças profundas. Nós também fomos surpreendidos – admite o parlamentar.
Frustração acumulada
Mas a crise era prevista. Em 2013, o jornal Financial Times escreveu uma reportagem na qual afirmava que “a própria estabilidade da economia chilena era rígida demais para responder às necessidades da população”. O texto dizia que, se por um lado o modelo produziu crescimento responsável por reduzir drasticamente a pobreza no passado, por outro não corrigiu as fissuras sócio-econômicas profundas que dividem a sociedade chilena: “A percepção é de que o Estado não intervencionista do Chile e sua estabilidade tão propagada, no lugar de aumentar oportunidades, está enganando camadas mais pobres”.
O efeito é de frustração, na avaliação do economista Guillermo Larraín, da Universidad de Chile.
– Nos países europeus, o Estado arrecada impostos e utiliza esses recursos para prover bens públicos, direitos sociais. É isso a que realmente aspira o Chile. O país não está em busca de uma economia estatizante ou bolivariana. As pessoas querem ser empreendedoras, ter sua atividade econômica, mas querem também se integrar à vida social com igualdade de condições. Hoje em dia, não é assim – diz.
A principal razão, segundo o pesquisador, é o fato de as contribuições feitas pelos trabalhadores ativos – hoje em torno de 10% do salário – serem insuficientes para garantir renda que satisfaça as necessidades básicas quando a aposentadoria chegar.
Apenas para efeito de comparação – já que o modelo brasileiro é essencialmente diferente do que vigora no vizinho –, a contribuição previdenciária paga pelos empregados no Brasil vai de 8% a 11% da remuneração, mas as empresas recolhem para o INSS o equivalente a 20% do salário do funcionário. Larraín foi um dos responsáveis pelo desenho de uma reforma do sistema chileno feita no governo de Bachelet, em 2008. Foi criado o chamado “pilar social” para atender a grupos mais desfavorecidos. Todo aposentado que não contribuiu com o sistema recebe o equivalente a R$ 600 por mês. Isso representa, segundo o economista, 0,7% do PIB. Diante dos protestos, o governo estuda elevar o montante.
Para a maioria dos analistas, apesar de integrar a Organização para a Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o seleto grupo de países ricos ao qual o Brasil almeja ingressar com o apoio do presidente Donald Trump, o Chile deve ser olhado no contexto da América Latina, continente que tem em commodities a base de sua exportação. O cobre responde por entre 7% e 10% do PIB. A queda nos preços do produto, entre 2014 e 2017, é um dos responsáveis pela desaceleração da atividade econômica, na avaliação de Larraín:
– Quando a economia cresce muito, como aconteceu aqui (no Chile), e a desigualdade não reduz ou reduz pouco, as pessoas vão se frustrando. O Chile não foi capaz de fazer o que fizeram os países desenvolvidos: elevar a carga tributária e redistribuir a renda ao mesmo tempo em que crescia.
Além disso, há uma ideia sedimentada tanto a centro-direita quanto a centro-esquerda: de que o setor público não pode gastar mais do que arrecada, espécie de “compromisso fiscal” que era informal e virou lei cerca de uma década atrás. A presença do Estado na economia é reduzida desde a era Pinochet e nem a oposição socialista de Bachelet ou Lagos alterou isso.
– Há um estado de concertação no Chile, de aceitar esse modelo econômico que, de algum modo, privilegia o modelo exportador e não a presença do Estado na economia. Enquanto o preço do cobre está alto, esse modelo funciona bem. No momento em que não está, o modelo fica em xeque – explica Trevisan.
Na avaliação do ex-economista do Bird Manuel Agostin, é importante reconhecer que o modelo deve ser modificado para que os benefícios cheguem a todos os cidadãos.
– Há muita gente que está passando muito mal. O importante seria se fizessem algumas reformas sem alterar a substância do modelo, de uma economia social de mercado – afirma.
Antes de se perder tudo, é melhor que os empresários façam gestos. Há empresas que já colocaram como proposta sobre a mesa aumentar os salários de forma muito significativa a todas as pessoas que trabalham em seus grupos. Creio que outras empresas vão fazer o mesmo.
MANUEL AGOSTIN
Ex-economista do Bird
O efeito possível seria o maior gasto público – e, talvez, mais impostos. Segundo o professor, no entanto, os empresários chilenos estão se dando conta de que negligenciar necessidades dos trabalhadores pôs todo o sistema à prova.
– Antes de se perder tudo, é melhor que os empresários façam gestos. Há empresas que já colocaram como proposta sobre a mesa aumentar os salários de forma muito significativa a todas as pessoas que trabalham em seus grupos. Creio que outras empresas vão fazer o mesmo – prevê.
Trevisan lembra que a menor intervenção do Estado na economia, ideia arquitetada pelos Chicago Boys, é hoje uma postura criticada até por liberais como o Prêmio Nobel de Economia 2008 e colunista do The New York Times Paul Krugman: “O choque liberal no Chile em 1973 produziu uma crise terrível a partir de 1981. O Chile passou por um pesadelo durante 10 anos”, chegou a escrever. Em 2009, quando o mundo se perguntava se os Estados Unidos entrariam em uma nova Grande Depressão, o professor de Princeton criticou o modelo chileno de fundos privados de pensões.
– Em 2005, era moda adotar o sistema chileno de pensão. Graças a Deus seguimos tendo um modelo estatal – afirmou o economista, ao elogiar o aumento do gasto fiscal por parte dos governos, que em vários países contribuiu para amortizar os efeitos da crise global.
– Não acredito que esse homem (Krugman) aceite o rótulo de comunista, e ele, contudo, faz críticas severas a esse modelo porque, de alguma forma, ele provoca profunda desigualdade na distribuição de renda – diz Trevisan.
O professor lembra que a própria Escola de Chicago já reviu sua proposta acadêmica, que destaca uma presença maior do Estado no processo econômico:
– Há novos Chicago Boys, que dizem que o caminho não é esse. Em certos lugares do mundo, ficamos apenas com a velha Escola de Chicago, e não pegamos a modernidade – critica.