Passados três meses de protestos no Chile, as manifestações nas ruas de Santiago diminuíram, mas não foram encerradas. O governo, acusado inicialmente pela truculência com que gerenciou a crise, ouviu boa parte das reivindicações — fez mudanças drásticas na aposentadoria e no sistema de saúde. O país passará por um plebiscito no próximo dia 26 de abril para definir se a população quer uma nova Constituição.
Em entrevista à coluna, o embaixador chileno no Brasil, Fernando Schmidt Ariztía, comenta o que mudou no país depois da onda que abalou a nação, reconhecida como exemplo de gestão por vários governos liberais.
O modelo econômico adotado pelo Chile era elogiado como exemplo por muitos governos. O que deu errado?
Não é necessariamente o modelo que está sendo questionado. Estão sendo questionados elementos do chamado modelo que ameaçam as vantagens, a consolidação de uma classe média. O país está passando por um problema de maturidade. A classe média, imensa maioria do país, está acostumada a passar férias no exterior, utiliza voos internacionais, tem um, dois, três carros às vezes, e conta com um nível de consumo consolidado, começou a se sentir ameaçada por alguns elementos, como a previdência. Está em andamento uma bateria de reformas previdenciárias. O segundo elemento é a reforma no sistema de saúde, onde já foram aprovadas duas ou três mudanças para dar satisfação a alguns elementos, como lista de espera (para consultas), preços dos medicamentos e outros aspectos. Essa é uma demanda que se manifestou nas ruas de Santiago pacificamente desde o dia 18 de outubro. São manifestações pacíficas, que todos endossam como parte da nossa democracia. Isso contrasta com a violência.
Quem está por trás dos grupos violentos?
Há vários grupos. Todos os grupos políticos são contrários à violência. Mas existem graduações nessa condenação da violência, que se manifestam no debate parlamentar. Existem grupos de esquerda que condicionam mais essa violência. Condenam a violência, mas não com a força com que deveriam fazê-lo. Por que da violência? Isso é um fenômeno mais sociológico do que político: um anarquismo foi crescendo durante décadas. O Chile tem um grupo de torcedores extremistas do futebol que se aproveita (da situação). São pessoas que celebravam o triunfo de sua equipe destruindo coisas. Há também grupos contrários à cultura ocidental, que gostam de revalidar um ideal pré-hispânico, com orgulho. O movimento foi criado a partir do quinto centenário da descoberta das Américas, prévio a 1992. Foi se criando um ideário onde estão esses grupos que têm como alvo não um sistema determinado, mas tudo. Há ainda grupos ultraprogressistas, feministas, que se encontram nas universidades. E, naturalmente, muitos são recrutados por soldados do narcotráfico e do crime organizado.
Em artigo publicado no jornal El Mercurio, o sociólogo chileno Carlos Peña afirma que não foi só a desigualdade econômica que provocou os protestos. Há toda uma frustração por parte dos jovens chilenos. O senhor concorda?
Esse articulista é de esquerda. É um advogado e sociólogo importante no Chile. Ele faz uma análise que tem a ver com aspectos de longa data, transversais a diversas sociedades do mundo. São frustrações que não existem só no Chile e não estão ligadas a um determinado grupo social. São transversais, grupos de alto poder aquisitivo que sentem essas frustrações.
Tudo o que (o governo) está fazendo é um ajuste bastante drástico de diversos gargalos que já tínhamos. Trata-se de consolidar os ganhos.
FERNANDO ARIZTÍA
Embaixador do Chile
O presidente Sebastián Piñera tem aceitado as reivindicações e implementado mudanças. Ele atuou por medo de que a crise derrubasse seu governo ou porque reconhece os problemas do modelo chileno?
É um reconhecimento das dificuldades. Tudo o que está fazendo é um ajuste bastante drástico de diversos gargalos que já tínhamos. Trata-se de consolidar os ganhos. A imensa maioria das pessoas no Chile rejeita a violência e quer que todo esse estado caótico termine.
O governo reconhece que eram necessários ajustes ao modelo liberal chileno?
Fala-se muito no jornalismo do modelo chileno. O modelo é o livre-mercado e isso não está em jogo. Não é o Estado que quer intervir na vida das pessoas. O Estado vai intervir mais, sim. Mas sem atingir o essencial. Não se trata de nacionalizar meios de produção. Nenhuma das propostas aponta para alterar a autonomia do banco central, para expropriar a poupança dos trabalhadores. Isso está fora de discussão.
Há um entendimento de que se liberalizou demais a economia?
Estamos transitando de um mundo liberal para uma sociedade com toques do liberalismo europeu.
Uma socialdemocracia?
Socialdemocracia ou democracia cristã dos países europeus em geral.
O senhor acredita que é necessária uma nova Constituição.
Necessária ou não é um debate que está colocado. Constituições não resolvem problemas diários das pessoas, como a fila do hospital. Novas constituições às vezes são necessárias para renovar o pacto político. Mas os problemas não são resolvidos por elas. Quando uma constituição é renovada o que se está dizendo é que o pacto político também será renovado. E é necessário às vezes que as sociedades assumam que os pactos políticos sejam renovados.
Apesar das várias medidas anunciadas pelo governo, os protestos continuam. Não se pode dizer que Santiago vive uma situação normal. O que falta?
Existem (protestos), mas estão diminuindo muito. De várias centenas de incidentes ao dia, hoje existem dois, três no país. A violência não foi reduzida completamente. Há um elemento que é da racionalidade do ser humano. E essa racionalidade está se expressando através de corpos legais de discussão entre governo e oposição e aprovação em tempo recorde de medidas que atingem essas preocupações da cidadania. A violência propriamente dita não está necessariamente ligada a esses corpos legais. Tem outra origem. É mais do tipo sociológico e não necessariamente político.
No início dos protestos, em outubro, o governo decidiu colocar o exército nas ruas para reprimir manifestações. A medida foi muito questionada porque lembrou a ditadura. Foi um erro?
O governo tem o dever de garantir a ordem pública, que o cidadão possa se movimentar livremente, abrir sua loja sem preocupação. Deve garantir os direitos dos cidadãos. Como quando o exército interveio no complexo da Maré, do Alemão (no Rio de Janeiro), mas isso não significa que o governo está utilizando as forças armadas para consolidar uma ditadura.
Falando sobre ditadura, que papel tem Augusto Pinochet na memória coletiva chilena? É um fantasma presente?
A figura de Pinochet havia ficado no passado. Ninguém se lembrava mais nos últimos cinco anos. Mas, claro, diante de desordem, alguns grupos extremistas espalham notícias sobre uma nostalgia dos tempos de Pinochet, o que aconteceria em qualquer sociedade onde organizações violentas ocupam determinado espaço. Mas isso não significa que a sociedade como um todo esteja com saudade de Pinochet. Nada disso.
O senhor acredita que as medidas anunciadas pelo governo são suficientes?
Esperamos que a cidadania compreenda e perceba os benefícios dessas novas medidas legais que estão sendo aprovados pelo Congresso e que possa isolar os grupos violentos cada vez mais. Isso é o mais importante. E que um novo pacto social entre governo e oposição permita a aprovação de medidas sociais que a oposição estava reivindicando também.