Não seria a primeira vez. Ditadores costumam fomentar a cizânia, estimular a divisão, fabricar inimigos - internos ou externos, reais ou imaginários. Ou aproveitam-se de levantes que, na prática, não teriam potencial para arranhar o regime, mas que, na hábil lábia de um autocrata, se transformam em uma narrativa de ameaça séria ao regime. Tudo isso para endurecer seu governo, implementar medidas extrajudiciais. Impor sua vontade.
As notícias mais recentes provenientes da Rússia indicam que aquela rebelião do final de junho pode ter sido montada. Nesta segunda-feira (10), o porta-voz do Kremlin informou que o presidente Vladimir Putin encontrou-se com o líder do grupo Wagner, Yevgeni Prigozhin, cinco dias depois do suposto motim. Ou seja, enquanto o mundo imaginava que o poder de Putin estava sendo colocado sob prova, o chefe de Estado encontrava-se com o homem ao qual acusara, horas antes, de traição e de ter lhe dado uma facada pelas costas.
Já havia vários furos na história: como, da noite para o dia, uma marcha que parecia fulminante em direção a Moscou fora interrompida sem mortes? Como Prigozhin aceitara o exílio em Belarus, Estado-fantoche do Kremlin, sem desconfiar que provavelmente seria morto? Como a maior revolta militar da história recente na Rússia fora estancada tão rápido? Como os traidores receberam anistia tão rapidamente depois que Putin fora a público prometer esmagá-los?
Pelo relato do governo, o motim começara em 23 de junho. No dia 29, Prigozhin e Putin se encontraram no Kremlin. Conversaram por três horas. Cerca de 35 pessoas teriam participado do encontro.
Prigozhin já havia dado pistas de que, em nenhum momento, mirara derrubar Putin, mas apenas seu ministro da Defesa, Serguei Choigu. O funcionário havia dado um ultimato para que os mercenários do Wagner se alistassem às tropas regulares. Na prática, seria o fim do grupo, a principal infantaria de Putin na Ucrânia. Prigozhin teria se levantado, como sempre mercenários o fazem, por interesses próprios. Como o tiro saíra pela culatra, teria recuado.
Ou foi isso, ou tudo, de fato, pode não ter passado de cortina de fumaça do Kremlin, com anuência de Prigozhin, para reforçar o poder de Putin.