Ao ser questionado, em entrevista à Rádio Gaúcha nesta quinta-feira (29), sobre por que não considera a Venezuela uma ditadura, Lula afirmou que democracia é um "conceito relativo".
O presidente está equivocado. A coluna vertebral de um regime democrático é constituído por eleições livres, independência entre os Poderes do Estado, liberdade de imprensa e de expressão política. Nenhum desses valores é respeitado no reino de Nicolás Maduro.
Há eleições? Sim, há. Não mais do que no Brasil, como afirmou o presidente durante a entrevista. Desde 1998 até agora, foram seis pleitos presidenciais na Venezuela e foram dois em intervalo de dois anos porque Hugo Chávez tirou da cartola uma nova Constituição que refundou o Estado - no Brasil foram sete eleições nesse período.
Mas a quantidade de votações é pouco relevante para se medir a saúde de uma democracia. Já citei em ocasiões anteriores neste espaço que no Iraque de Saddam Hussein e na Síria de Bashar al-Assad sempre houve eleições - vencidas, em geral, por 100% dos votos no primeiro caso e por mais de 90% no segundo, em uma tentativa de dar um verniz legal ao pleito. Até na ditadura brasileira havia eleições - indiretas, claro.
Não adianta haver votações se essas estão impregnadas de irregularidades, como no caso da Venezuela, onde não basta "querer derrotar Maduro" porque as cartas estão marcadas. Não há liberdade de imprensa, não há veículos de comunicação independentes - todos foram estrangulados economicamente -, não há liberdade de manifestação política. Os Poderes Legislativo e Judiciário foram absorvidos pelo Executivo. Vive-se um Estado militarizado e um controle social imposto por milícias a serviço do Palácio de Miraflores que pode ser igualado às piores experiências de algumas das autocracias do século 20. Tudo isso foi drenando, por dentro e diariamente, o vigor da democracia.
Estranha que Lula considere um golpe a cassação do mandato da ex-presidente Dilma Rousseff em um processo de impeachment, previsto na Constituição, e não considere as violações ao Estado democrático de Direito que provocou, junto com o esfacelamento da economia, um êxodo histórico de venezuelanos para Brasil e Colômbia. O Brasil não é uma democracia "apenas" porque realiza eleições - o é porque as instituições funcionam a pleno, como se viu no pleito transparente de 2022, reconhecido por governos e organizações internacionais, e na reação à tentativa de golpe de 8 de janeiro em Brasília.
O presidente comete o mesmo equívoco de relativizar democracia ao estender a reflexão para a Nicarágua, onde, em suas palavras, há "um problema" entre Daniel Ortega e a Igreja. Não, o processo de venezualização da nação centro-americana não se deve só ao fato de o regime perseguir vozes eclesiásticas que ousam se levantar contra o poder. O problema da Nicarágua é o mesmo da Venezuela: a falência estrutural das instituições democráticas e seus princípios.