Enfim, o presidente Lula desembarca nesta quarta-feira na China, depois do adiamento da visita inicialmente programada para o dia 26 de março. Em vários aspectos, essa pode ser considerada a mais importante viagem internacional desse primeiro ano de governo — e provavelmente de todo o mandato.
O Brasil sob Jair Bolsonaro dinamitou pontes com seu principal parceiro comercial no pior momento, quando mais precisava. O então presidente e seu círculo próximo embarcaram na narrativa do “vírus chinês”, de Donald Trump, no auge da pandemia. Resultado: o Brasil contraiu a antipatia de Pequim e houve atraso na remessa de insumo para a vacina contra a covid-19 em uma hora dramática, o que certamente resultou em mais mortes.
É fato que a China é uma ditadura, governada por um partido único, o comunista, cada vez mais centralizado na figura do quase imperador Xi Jinping, que viola direitos humanos, persegue a imprensa, a oposição e minorias étnicas e religiosas. Mas também é fato que toda democracia mantém relações com regimes autoritários — a começar pelos Estados Unidos, cuja economia está entrelaçada com a chinesa. Pensar em desacoplamento, hoje, colocaria em risco empresas americanas e a estabilidade do país.
Aliás, há mais chances de Lula trazer de volta na bagagem de Pequim acordos concretos do que quando retornou de Washington. Nos Estados Unidos, o presidente colheu a promessa de investimento de US$ 50 milhões da Casa Branca no Fundo Amazônia, mas qualquer dinheiro para esse fim precisa ainda ser aprovado pelo Congresso americano. Na China, serão negociados termos de praticamente todos os setores que interessam ao governo: alta tecnologia, satélites, semicondutores, 6G, inteligência artificial, expansão da internet, clima, turismo e energia limpa, entre outros.
— Eu quero que os chineses compreendam que o investimento deles aqui será maravilhosamente bem-vindo. Mas não para comprar nossas empresas. Para construir coisas novas, que nós precisamos. O que estamos precisando não é vender os ativos que temos, é construir novos ativos. É disso que eu quero convencer os meus amigos da China — disse Lula na quinta-feira, no café da manhã com jornalistas, no Planalto.
Os chineses observam o Brasil como peça fundamental na balança de poder global que, cada vez mais, pende para o seu lado. Enxergam no Itamaraty sob Lula uma política externa independente, e isso é música a seus ouvidos na disputa geopolítica com os Estados Unidos e na construção de uma nova ordem internacional alternativa ao sistema erigido pelos americanos em grande parte após a Segunda Guerra Mundial.
Se Lula souber exercer o pragmatismo, velha tradição da diplomacia brasileira, poderá não apenas reconstruir pontes, como pavimentá-las. Com sorte, o presidente adepto de citações e metáforas desembarcará em Xangai hoje recitando o mantra de Deng Xiaoping, o líder da abertura econômica chinesa: “Não importa a cor do gato, desde que ele cace ratos”. Preservando a relação com os EUA, é hora de o Brasil tirar proveito do melhor de dois mundos.