O diretor presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira em São Paulo (Camarbra), Federico Servideo, considera o encontro entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Alberto Fernández, na Argentina, na próxima semana, fundamental pata implementar uma agenda que envolve grandes temas bilaterais.
No encontro, que ocorrerá em Buenos Aires, serão discutidos assuntos como a modernização do Mercosul, o acordo do bloco com a União Europeia, a questão energética e até uma possível moeda única, tema que voltou a público recentemente depois de um encontro entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o embaixador argentino em Brasília, Daniel Scioli. Lula viaja no domingo à Argentina em sua primeira visita ao Exterior como presidente. Na sequência, ele irá também ao Uruguai. A seguir os principais trechos da entrevista com o dirigente.
Qual a expectativa para o encontro entre Lula e Fernández?
As expectativas são grandes, há uma agenda de temas importantes sobre como fazer o gás argentino pode chegar ao Brasil para ser importante na transição energética, o sistema de moedas únicas, para eliminar as transações via dólar entre os países, e o aumento do fluxo de exportações brasileiras para compensar em parte o crescimento que a China tem tido nos últimos anos. As expectativas são grandes porque os temas são grandes: como modernizar o Mercosul para deixarmos essas travas que não permitem o desenvolvimento dos países, notadamente a redução da tarifa externa comum, que originou muitos ruídos no ano passado. Há muitas expectativas pela visita em si devido à representatividade de Lula e pela agenda.
Argentina e Brasil enfrentam problemas: o primeiro do ponto de vista econômico e o segundo pela instabilidade institucional. Como isso atrapalha o comércio?
Obviamente, atrapalha. Não tanto o comércio, mas os projetos, investimentos e grandes decisões. O comércio corrente não atrapalha, as exportações brasileiras para a Argentina cresceram significativamente no ano passado, as importações também, muito acima da média. Mas o que atrapalha são os grandes projetos de investimentos. Esses temas que te falei não são para um governo, mas para décadas. São temas que colocariam a relação bilateral em outro patamar. Não falaríamos de crescer 20%, 30%, mas 300%. A macroeconomia argentina atrapalha significativamente nesse sentido. Instabilidades, como a que o Brasil atravessa agora, postergam grandes decisões de investimento, de relocalização de indústrias.
Sobre a tarifa externa comum, qual o ponto principal a ser debatido?
Argentina não quer reduzir essa tarifa para não facilitar as importações, e o Brasil quer reduzi-la para controlar a inflação. Na medida em que a inflação no Brasil está sob controle, por firme atitude do Banco Central e outros componentes, e na medida em que houve aqui uma troca de governo um pouco mais contemplativa com vizinhos, como a Argentina, acho que a pressão, pelo lado do Brasil, para se reduzir a tarifa, tende a diminuir por um tempo. Por outro lado, pela Argentina, a pressão por não reduzir vai continuar. A tarifa externa comum limita a potencialidade do Mercosul. A gente quer um Mercosul que seja uma união aduaneira, que é o que é? Historicamente, o Mercosul teve mais benefícios políticos e institucionais do que econômicos: a cláusula democrática, para mim, acabou sendo mais importante do que a cláusula econômica. Temos de colocar essa discussão: uma união aduaneira é suficiente? Acho que não. Não adianta só modernizar o Mercosul, eliminando a tarifa externa comum. Precisamos ser muito mais ambiciosos e tomara que o presidente Lula lidere isso: dar um passo além de uma mera união aduaneira para um mercado comum de fato para aproveitar as oportunidades que estão fora do Mercosul.
Quando se fala de Mercosul, sabe-se dos entraves. Falar em moeda comum não é algo utópico diante de tantas coisas que não avançaram.
É difícil para o Brasil aceitar, porém, na medida em que os bancos centrais assumirem os riscos próprios de implementar essa moeda, pode sair. O problema é que com uma inflação de 100% na Argentina e com a deterioração da moeda, independentemente de que os bancos centrais façam sua parte, vai ficar muito difícil convencer os exportadores brasileiros a aceitar o peso. E mais difícil ainda, por incrível que possa parecer, vai ser os exportadores argentinos aceitarem o real. Porque, nós, argentinos, pensamos em dólares. A percepção do empresário brasileiro é complexa: a gente estava preocupado aqui com uma inflação de 10%, os argentinos têm uma inflação de 100%. É um tema que vai exigir não só um marco regulatório, mas uma mudança de mentalidade muito grande dos atores econômicos dos dois países.
Com relação ao acordo Mercosul-União Europeia, há muita resistência de alguns países como a França. Como destravar?
Somos muito favoráveis por destravar o acordo por dois motivos. Primeiro porque é um negócio de US$ 750 milhões de habitantes para o Mercosul. Mas esse não é o principal motivo. O principal é que esse acordo vai obrigar a modernizar, flexibilizar o próprio Tratado do Mercosul. Como te falei, o Mercosul precisa ser atualizado, modernizado. Está velho. O acordo com a UE força essa atualização.
Em questões ambientais, por exemplo.
Em questões ambientais, tributárias, eliminar barreiras, unformizar todo o sistema de certificação de produtos. Não faz sentido que um carro tenha de ter certificação argentina e brasileira. Que um alimento tenha certificado lá, e que a etiqueta de lá não sirva aqui, e vice-versa. Há um monte de ineficiências estruturais que o acordo com a UE vai eliminar. Os europeus vão dizer: "Fiz um acordo com o Mercosul, se (o produto) vem do Brasil ou da Argentina, tanto faz. Mas a etiqueta tem de ser única". Mas convencer os franceses não será fácil. Tomara que Lula consiga. Obviamente, para Bolsonaro era impossível. Também não sei o quanto Lula está convencido desse acordo. Porém, se alguém é capaz de convencer os franceses pode ser o presidente Lula. A pergunta é se o presidente Lula está convencido do acordo.