Principal pensador da política externa no governo Luiz Inácio Lula da Silva, ministro das Relações Exteriores (1993 e 1995 no governo Itamar Franco e entre 2003 e 2010, nas gestões do PT), Celso Amorim terá, certamente, um papel fundamental no novo mandato. O ex-chanceler é cotado para ser o assessor presidencial, invertendo uma dobradinha que Lula adotou nos dois primeiros mandatos, em que Amorim era o ministro e o gaúcho Marco Aurélio Garcia o auxiliar. Ou, mesmo, voltar a ser o titular do Itamaraty.
Amorim é o criador da expressão "política externa ativa e altiva", sobre a qual já escreveu vários livres de relações internacionais. Ele atendeu a coluna rapidamente, nesta quinta-feira (1º), por telefone, enquanto esperava convidados para uma reunião.
Na síntese a seguir, ele comenta os ajustes necessários na política externa do presidente eleito, na comparação com os períodos anteriores, fala sobre a posição do Brasil na disputa hegemônica entre Estados Unidos e China e reflete sobre o acordo entre Mercosul e União Europeia, que admite necessidade de ser revisto.
Sabemos como a política externa andou nos dois mandatos de Lula, a sua visão de relações internacionais, mas o mundo mudou de lá para cá. O que é necessário readequar no futuro governo Lula?
Naquela época, as coisas eram mais ou menos claras, as abjeções de defesa do interesse do Brasil, por isso acentuei muito, por isso acentuei muito, por orientação do presidente Lula da questão da política ativa e altiva, isto é, nossa capacidade de fazer agenda a internacional e não nos inibirmos de mobilizar esforços nesse sentido. E também não aceitar a agenda dos outros, como era o caso da Alca, a maneira como estava sendo colocada a negociação da OMC. Problemas desse tipo não desapareceram de todo, mas hoje em dia, você tem razão, o mundo mudou consideravelmente. Nós não víamos, em 2002, 2003, risco de uma guerra mundial, por exemplo, ou nuclear, ainda que limitada. Nem sequer risco de uma guerra no coração da Europa, embora víssemos já ações unilateral, como já tinha ocorrido no Iraque, na Sérvia, e outras. Independentemente de julgar o mérito, eram ações condenáveis às luzes do multilateralismo. Mas agora acho que é um problema diferente: estamos com uma ameaça planetária, que é a mudança climática. Não é mais uma questão para se discutir se sim ou se não, mas o que devemos fazer. Tivemos com a pandemia, que não está totalmente dominada, a demonstração de que outros riscos existem, não sei se propriamente a sobrevivência da humanidade, mas as condições de vida e até uma certa arrogância na forma de viver e de se relacionar com a natureza. E temos a guerra no coração da Europa, no coração geopolítico do mundo, sem falar na continuidade dos problemas gerados pela desigualdade, pobreza, pela fome. Acho que, em ao invés de ver questões pontuais que o Brasil tinha de resolver, o país hoje tem de estar envolvido de maneira mais ampla no encaminhamento do conjunto dessas questões. Não são questões para o Brasil ou do Brasil. São para o Brasil também. Mas são para o mundo, então, acho que isso nos obriga a outra visão do mundo. Claro que isso não exclui questões que já existiam, como a necessidade de integração sul-americana, a busca da multipolaridade, mas a forma de buscar é diferente. E a urgência de mudança na governança global para evitar essas questões é muito maior.
E com relação da disputa entre Estados Unidos e China, o senhor é um defensor do pragmatismo brasileiro, de não comprar briga de nenhum dos lados. É esse o caminho?
Pragmatismo não significa que você não tenha os seus valores. Mas, obviamente, nós não temos de entrar nessa briga. Aliás, fiquei satisfeito, depois do encontro do presidente Biden com o presidente Xi no G20, que não necessariamente teremos uma Guerra Fria. Não há porque temer uma Guerra Fria. É isso que queremos, um mundo em que a cooperação prevaleça sobre o conflito. E o que pudermos fazer para contribuir para isso, faremos.
E com relação ao Mercosul, a ideologização parece que sempre atrapalha. O que vocês pretendem?
Não acho que seja um problema de ideologia. Qual acordo?
Acordo Mercosul-União Europeia.
Temos hoje duas questões importantes a tratar: uma é Mercosul-União Europeia, do ponto de vista de uma visão mais global, um acordo entre a América do Sul em geral, e o Mercosul em particular, e a União Europeia, é importante estrategicamente para esse mundo multipolar, mas isso não significa que esse acordo como foi firmado seja intocável. Os próprios europeus querem tocar na questão do clima. Tudo bem, desde que não seja nenhum protecionismo escondido por detrás disso. Por outro lado, nós também temos o desejo de receber investimentos, queremos desenvolvimento tecnológico. Como esse acordo foi firmado às pressas, ele abriu concessões, a meu ver, excessivas. Então, é preciso revisitar. Não estou dizendo que é preciso reabrir tudo, começar tudo de novo, mas tem de ser revisitado. Mas, claro, isso vai depender também de outras áreas de governo, não sei nem exatamente em que área vou estar, se vou estar. Mas essa é uma questão. A outra questão, que revela que não é ideológica, é a questão do Uruguai em relação ao Mercosul e à constante busca de acordos em separado. Durante o governo da Frente Ampla, sobretudo durante o governo Tabaré Vásquez, o ministro da Economia uruguaio queria porque queria fazer um acordo com os EUA. Hoje, eles têm um governo de direita e querem fazer um acordo em separado com a China. A gente tem de entender isso, não é questão ideológica necessariamente. Mas há uma insatisfação do Uruguai em relação ao Mercosul que nós temos de compreender e para qual temos de trabalhar.