Com vasta experiência em temas de comércio internacional, o ex-embaixador José Alfredo Graça Lima considera que reformas internas, como a fiscal e a tributária, são fundamentais para melhorar a imagem do Brasil também no Exterior.
Crítico das primeiras declarações do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva em relação à política externa, o diplomata considera que o Brasil sempre falou de igual para igual com grandes potências - e chama de "demagogia" defender que, só agora, faria isso. Graça Lima foi um dos autores do plano de governo da então candidata Simone Tebet (MDB), que deve integrar o futuro governo.
Atualmente vice-presidente do Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o diplomata participou, quase 50 anos de carreira, de negociações importantes na Organização Mundial do Comércio (OMC). A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu à coluna.
O senhor participou do plano de governo da senadora Simone Tebet, que deve integrar o governo eleito. Que parte do projeto o senhor considera fundamental que Lula mantenha?
Minha preocupação foi situar o que é política externa de um governo que precisa ser ao mesmo tempo liberal, universalista e multilateralista. São elementos fundamentais para que o Brasil possa atender a suas necessidades. Frequentemente, a política externa é usada para projetar uma imagem que não é a do país, isso ocorre em governos que têm necessidades de, por razões internas, brilhar no Exterior. Mas, o Brasil sendo um país com falta de excedente de poder, terá de procurar parcerias, defender direitos de acesso e cooperar para que a política externa contribua para a consecução dos objetivos do Estado, que são crescimento com justiça social a custos mais reduzidos. Se não fizer reforma fiscal, não definir uma âncora fiscal, não há política externa que atenderá a nossas necessidades. Há uma distinção muito clara entre o comportamento do governo Lula em matéria de política externa, do Michel Temer e de Jair Bolsonaro pós-Ernesto Araújo. Faço questão de preservar o papel do Itamaraty nos últimos dois anos, que foram de volta à normalidade em relação ao desastre da diplomacia presidencial. A diplomacia profissional, em qualquer país, tem de ser protegida, apoiada, amparada. Ela defende o Estado, não um governo de plantão e muito menos um partido.
De que forma a definição de uma âncora fiscal responsável reflete na política externa?
A primeira obrigação de um governo é de cuidar da política doméstica, realizar reformas que permitam atender às necessidades em saúde, segurança, infraestrutura, transporte, energia e educação. Se você inicia um esforço nesse sentido, certamente o primeiro resultado vai ser uma mudança na apreciação de como o Brasil está cuidando de si, para poder então se relacionar mais utilmente com seus parceiros. Foi exatamente o contrário do que aconteceu nos dois primeiros anos de Bolsonaro. O governo Lula nem começou, mas voltando a suas palavras, em 30 de outubro, não se vai nessa direção. A questão da âncora fiscal está longe de ser resolvida. Ela é fundamental para se iniciar um ciclo de prosperidade. Outra é a reforma tributária. Para economistas como Edmar Bacha, signatário daquela carta para Lula, desenvolvimento é sinônimo de produtividade. Se o Brasil não ganha produtividade através de uma economia mais aberta, uma liberalização do comércio, o país vai continuar dependente, não só do agronegócio, mas vai continuar deixando de crescer sustentavelmente. E tem um complicador adicional que é o custo da transição para economia verde. Crescimento depende de comércio, intercâmbio de bens, serviços, tecnologia, de investimentos. É preciso arrumar a casa e fazer as reformas.
Que críticas o senhor faz às primeiras manifestações de Lula em relação à política externa?
Elas me suscitam muitas indagações. Lula diz que o Brasil vai voltar a falar de igual para igual com os países mais ricos e poderosos. A pergunta é: em que ocasiões o Brasil deixou de fazer isso? O Brasil é soberano, sempre tratou de brigar intransigentemente pelos seus direitos e de defendê-los em todas as ocasiões. Pode ter sido maltratado, mas não quer dizer que não tenha falado de igual para igual. Pode ter deixado de alcançar objetivos, o que não significa que os agentes não tenham trabalhado para o país. Acho um pouco injusto. Em 2003, ele falava algo como "nunca antes na história desse país", "agora, o Brasil vai ser protagonista", "política externa ativa e altiva". Tenho muitas reservas com esse discurso porque isso é demagogia, não corresponde à ação do Brasil desde antes até da independência. Por exemplo: o Brasil, em matéria de comércio, nos anos 1970 e 1980, era isolado porque tinha uma posição contrária à liberalização. Até hoje, tem uma economia muito protegida. Somos hoje um país com 33 milhões de pessoas com fome, tem o desafio da pobreza, da desigualdade, você precisa de uma política externa que ajude a superar esses desafios, por meio de reformas e ações de cooperação, bilateralmente ou no âmbito de grupos ou regional.
Gostaria de aproveitar a sua experiência na OMC e reconhecido talento na área comercial para falar sobre o acordo Mercosul-União Europeia. Por que não avança?
O Brasil já concordou nessa última fase de negociação com o princípio da precaução, que responde às preocupações europeias de preservação do ambiente, mas, apesar disso, depois do acordo concluído e daquelas trocas de ofensas entre Bolsonaro e Emmanuel Macron (presidente francês), tudo ficou muito envenenado e acabou dando razão àqueles que o veem como uma ameaça. Me refiro ao lobby agrícola. Todo mundo tem razão, e ninguém tem razão. O acordo é muito modesto em matéria de acesso a mercados, porque estabelece cotas. E cota não é legal, isso é proibido pela OMC, ainda assim, por ser agricultura, todo mundo faz vistas grossas. Todo mundo tem preocupações com agricultura, exceto um país que é potência agrícola: o Brasil. O Mercosul não é nem área de livre comércio nem união aduaneira. Tem uma crise de identidade profunda.
O Mercosul está contaminado por ideologias, e conversas sobre integração logística, energética e aduaneira acabam ficando de lado.
O Mercosul está tendo o mesmo destino da Comunidade Andina. Tornou-se um belo arcabouço institucional, mas, em matéria de integração regional, nunca cumpriu sua finalidade. A integração comercial foi totalmente anulada, como está sendo o caso do Mercosul. Hoje, você só há algum comércio expressivo entre Brasil e Argentina, mas cada vez menos. Os principais parceiros do Brasil são China, Europa e EUA, depois vem o Mercosul. Imagine se isso é plausível em um acordo com tarifa zero? Até porque o principal produto que é trocado não tem livre comércio, que é o automóvel. Tudo isso é muito negativo. Sobre o acordo, os ambientalistas têm certa razão, mas não eles não a tem ao usar o comércio em troca de proteção ao ambiente. Ao mesmo tempo que o Brasil tem de fazer o dever de casa em relação ao ambiente precisa também defender seus direitos na OMC, que é o de ter acesso aos mercados internacionais. Isso já é muito prejudicado pela imposição de cotas, de restrições quantitativas.
O Brasil está é parceiro de pesos-pesados que disputam questões comerciais: China, EUA e Rússia, que está no Brics. Como devemos nos posicionar?
O Brasil, em matéria de comércio, só não está no melhor dos mundos porque não tem oferta exportável de produtos industrializados. E porque sua agricultura é protegida em alguns mercados. O Brasil está muito longe da China para se meter em imbróglios geopolíticos. Está próximo dos EUA e muitas vezes ocorre de ficar submetido a pressões. Mas já estamos no século 21, os EUA já não têm aquela mão tão longa quanto no passado. E, para exigir coisas de um país como o Brasil, tem de mudar alguma coisa em troca. Senão, não vai obter. Não vai ser na base do grito. Na questão da 5G, houve aquela pressão, meio disfarçada, mas nada aconteceu. O Brasil não foi prejudicado. O Brasil pode e deve continuar mantendo esse equilíbrio.
Pragmatismo?
Sim, pragmatismo responsável, não ideológico. Em relação à Rússia, o Brics surgiu como acrônimo de economias que viriam a crescer mais do que as desenvolvidas. Isso não ocorreu, a não ser pela China e, mais recentemente, pela Índia. Mas Rússia, Brasil e África do Sul sempre foram primos pobres. Brics nunca foi mecanismo para articulação econômica e comercial. Acabava sendo muito mais caixa de ressonância política.
Sobre o futuro governo, o senhor defende um diplomata de carreira ou um político como ministro das Relações Exteriores?
Não pode ter receita única. Pode ter um político que seja muito bom para o ministério, como acho que foi o Aloysio Nunes. Ele soube usar os recursos de que o Itamaraty dispõe. Não tenho preferência sobre ser ou não um diplomata. Você pode ter um diplomata que põe tudo a perder ou um político que ponha tudo a ganhar, desde que compreenda o seu papel à frente do ministério.