Depois de quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro, a reinserção internacional do Brasil tem preocupado Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores em duas ocasiões (1992 e entre 2001 e 2003, e um dos principais pensadores da política externa do país.
Em entrevista à coluna, o professor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), considera que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva parte do que chama de "capital diplomático" acumulado pelos dois mandatos anteriores e avalia que as questões ambientais são um canal fundamental para melhorar a imagem do Brasil no Exterior. Durante a conversa de quase 30 minutos, na qualidade de ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, ele também reflete sobre as discussões a respeito da proposta de emenda à Constituição (PEC) da transição e discute os papéis do chanceler e do assessor presidencial no futuro governo. A seguir, trechos da entrevista.
Entre os principais analistas de relações internacionais, há consenso no diagnóstico de um legado isolacionista da política externa do governo de Jair Bolsonaro. É possível reconstruir laços? Como?
Um dos objetivos declarados por Lula é de que ele pretendia e almejava recuperar o lugar do Brasil no mundo. Ele conta com dois fatores positivos para isso: primeiro, a repercussão internacional positiva ao resultado que o guindará à presidência. Há expectativa muito positiva de que ele possa atingir esse objetivo de recuperar a presença do Brasil no mundo, e ele é um símbolo daquilo que ele pode representar a seus parceiros internacionais. Bolsonaro era de que ele não representava essa visão, usualmente positiva, que nossos interlocutores no plano internacional têm. Lula parte também de um capital diplomático que acumulou em suas duas presidências anteriores, nas quais foi um ator importante no plano internacional. Ele já sinalizou aquilo que pode tentar fazer indo à COP27. E tem um lastro positivo que resulta do apoio de Marina Silva a sua candidatura e ao que ela representa mundialmente e no plano interno nessa área. Também há os compromissos que ele já assumiu em torno da prioridade da agenda ambiental. O Brasil tem o lastro do conhecimento acumulado nesse campo e um capital diplomático que vem da Rio92. Isso ajuda e dá substância àquilo que ele pode fazer. Nenhum outro país é tão relevante e tão importante para atuar construtivamente nessa matéria de ambiente.
A questão ambiental deve ser o canal principal para restaurar a imagem do Brasil lá fora?
Não tenho dúvidas. Há um potencial de articulação com os EUA, que atribui a isso grande importância. Tem também potencial de articulação com a União Europeia, e é compatível com as preocupações que a própria China tem com o ambiente. Essa é uma agenda que nos oferece oportunidade de recuperar muito bem o lugar do Brasil no mundo. Ela nos interessa no campo interno, porque resolve problemas fundamentais do Brasil: agronegócio, regime de chuvas, regularização da propriedade, combate ao garimpo ilegal, ao desmatamento.
Lula tem de fazer ajustes e reavaliações, tanto por razões do plano internacional quanto interno. No plano internacional, o relevo do conflito por hegemonia entre a China e os EUA traz um efeito muito além do que a dinâmica própria de um relacionamento bilateral normalmente tem.
Mas o cenário mudou desde o primeiro mandato Lula, iniciado em 2003: guerra na Europa, crescimento da disputa hegemônica entre China e EUA, preços de commodities em baixa. Que ajustes e reavaliações em relação ao passado, aos primeiros anos do PT, são necessários?
Lula tem de fazer ajustes e reavaliações, tanto por razões do plano internacional quanto interno. No plano internacional, o relevo do conflito por hegemonia entre a China e os EUA traz um efeito muito além do que a dinâmica própria de um relacionamento bilateral normalmente tem. Isso tem efeito no plano internacional. É uma mudança em relação ao que Lula, como presidente, lidou anteriormente no cenário internacional. Temos vantagem de estarmos mais longe dos centros de tensão internacional. China tem hoje presença na nossa região muito maior do quando ele fora presidente: econômica, política e de segurança. Cabe procurar uma posição equilibrada, usando mais nossos interesses específicos, sem fazer disso item fundamental, e resguardar nosso espaço de autonomia. O Brasil, por sua localização e realidade, tem condições de viabilidade de fazer isso, e tem condições de permissibilidade. Se estivéssemos na Ásia ou na Europa, essas condições de permissibilidade seriam mais reduzidas.
Muita crítica se faz ao alinhamento automático de Jair Bolsonaro com governos ideologicamente amigos - Donald Trump, Victor Orbán e a extrema direita polonesa. Mas há críticas também à diplomacia de Lula, cuja política externa esteve alinhada a ideologias, só que esquerda (Hugo Chávez, Nicolás Maduro e Evo Morales, por exemplo). Além disso, houve financiamentos do BNDES a países da África e da América do Sul e do Caribe, como Cuba, que foram vias de corrupção. Como o senhor avalia?
Em relação a Bolsonaro, as preferências ideológicas, como Trump, nos isolaram. Em relação ao governo anterior de Lula, houve inclinações ideológicas, como aquelas que você menciona. Algumas mais significativas, outras menos. Em relação aos países da América Latina, há algo que possa sustentar isso, desde que tenha equilíbrio e sem excessos, que se tenha o mérito dos projetos e não a inclinação em aprová-los por razões ideológicas. Apesar disso tudo, Lula soube manter boas relações com os EUA, com o governo George W. Bush, e com a Europa. Há uma dimensão de flexibilidade que merece registro. Quando ele foi eleito, na primeira e na segunda vezes, a vitória dele foi também foi do PT, e a vitória do PT envolvia inclinações diplomáticas que o partido tinha, com nítida dimensão ideológica que ele foi administrando de um jeito ou outro. Mas que tinha, tinha. Agora, ao contrário, a vitória de Lula foi fruto de uma coligação de abrangente apoio, decisiva. A vitória dele foi por uma margem estreita. Lula precisa fazer uma política externa que responda também a essa abrangência maior da qual resultou sua eleição. E que também seja um instrumento de validação mais ampla da política externa dele, que seja um instrumento e sustentabilidade da governança, num país que as urnas revelaram muito polarizado. Minha avaliação é de que essa política externa da terceira presidência Lula tem de ir além daquilo que eram as preferências ideológicas que animaram o PT e que fizeram com que o partido, quando assumiu a sucessão de Fernando Henrique Cardoso, tivesse manifestado como forma de responder a esses anseios.
Todos os setores são sensíveis àquilo que avaliam a percepção da realidade, e o mercado, mais do que qualquer outro, antecipa os riscos que sente. É preciso voltar à lei do orçamento, que tal como está proposto não funciona
Durante os governos anteriores, houve uma dobradinha entre o chanceler Celso Amorim e o assessor presidencial, Marco Aurélio Garcia. Tudo indica que esse formato deve se repetir, tendo Amorim na posição de conselheiro. Essa duplicidade não é ruim?
É sempre útil que o conselheiro do presidente na área de relações internacionais tenha uma sintonia fina com o chanceler. Foi a minha experiência pessoal quando fui ministro do presidente FHC e no curto período em que fui ministro de Fernando Collor em 1992. A dualidade atrapalha uma coisa importante na política externa: a coerência. Ela é importante porque gera a consistência da previsibilidade por parte dos demais atores internacionais. Mas claro que a condução da política externa no seu sentido mais amplo de um país complexo como o Brasil passa por outras instâncias: agricultura, o ministério na época da Indústria e Comércio, áreas de direitos humanos. Cabe ao chanceler em conjunto com o presidente ir harmonizando essas aspirações. É importante que hajam afinidades entre um e outro. Quem conduz a política externa é o presidente da República, com o apoio do seu ministro de Relações Exteriores. O presidente é importante porque é através da pessoa dele que outros países veem o que o Brasil significa para os demais. Uma das coisas muito negativas na diplomacia do governo Bolsonaro era de que ele simbolizava essa negatividade com a qual olhava o mundo e nossos interlocutores, e fazia uma seletividade que não era do nosso interesse. Lula tem essa dimensão simbólica. O que cabe a ele, para ser bem sucedido, é usar bem essa representação simbólica.
Que perfil o senhor defende para o cargo de chanceler?
Não sou eu que irei dizer o perfil. O Itamaraty tem quadros qualificadíssimos, e Lula teria condições, sem dificuldades, de encontrar alguém que possa desempenhar esse papel. Mas não é necessariamente o caso. Não fui ministro de carreira. E acho que procurei desempenhar bem esse papel. Aloysio Nunes, mais recentemente, foi um bom ministro no governo Michel Temer. É preciso que o ministro, mesmo não sendo de carreira, que tenha interesse nos assuntos, domínio e capacidade e se articular.
Na qualidade de ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, lá em 1999, no governo FHC, como o senhor avalia a PEC da transição e as declarações do presidente eleito em relação à necessidade de priorizar o social?
Todos os setores são sensíveis àquilo que avaliam a percepção da realidade, e o mercado, mais do que qualquer outro, antecipa os riscos que sente. É preciso voltar à lei do orçamento, que tal como está proposto não funciona, porque não corresponde à realidade. Os economistas que escreveram para Lula foram muito qualificados e competentes politicamente porque disseram que responsabilidade fiscal não se opõe à responsabilidade social. É preciso compatibilizar os dois. Senão tiver responsabilizar fiscal, você afeta a responsabilidade social, com inflação e juros que são os itens mais óbvios da pauta. Convém lembrar que o Plano Real fez uma fantástica redistribuição de renda, porque assegurou a quem recebia a remuneração pelo trabalho a segurança dos seus proventos, que não ficavam se dissolvendo pela espiral inflacionária. Lula está procurando ver como modula essas aspirações para lidar com a história.
O senhor apoiou o candidato Lula durante a campanha. Tem vontade de ter alguma função no governo?
Meu período de vida ativa pública está encerrado até por uma questão de faixa etária. Estou em outra esfera. Tenho procurado escrever publicamente o que penso. É o que acho que está a meu alcance fazer.