Um dos principais pesquisadores brasileiros das relações civis-militares e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), Eduardo Svartman avalia que o principal teste de habilidade do futuro ministro da Defesa será iniciar o processo de enquadramento das três Forças Armadas ao regulamento militar e à arquitetura legal e constitucional do país.
Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor do Departamento de Ciência Política e dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política e em Estudos Estratégicos Internacionais da instituição, ele vê nos atuais tensionamentos entre os militares e o poder civil como consequência, em parte, da falta de uma reflexão histórica sobre o papel da ditadura e a militarização do governo do atual presidente, Jair Bolsonaro, quando as Forças Armadas passaram a exercer poder político, não previsto na Constituição.
De Londres, onde é professor visitante do King's College, ele conversou com a coluna sobre o atual momento brasileiro.
Ao contrário de outras áreas, a Defesa não tem grupo de transição - os nomes foram sendo adiados pela equipe de Luiz Inácio Lula da Silva e, agora, o presidente eleito afirma que irá anunciar diretamente o ministro Defesa e das três forças. Isso revela a delicadeza do tema?
Isso está diretamente ligado ao perfil do governo anterior (de Michel Temer) e ao engajamento de vários militares da reserva e ativa no mandato de Bolsonaro, que acabaram criando uma situação de aparente comprometimento da instituição militar com determinado governo. Entrando outro governo, isso acaba gerando uma série de tensões. Combina-se também com os eventos de contestação do resultado eleitoral, em que setores de diferentes polícias e Forças Armadas em alguma medida aderiram ou apoiaram essas manifestações. Isso cria tensão, que, em certa medida, pode ser usada como ferramenta de barganha política, o que é inadequado, porque as Forças Armadas não são um poder político, são uma burocracia do Estado, cuja missão é executar a política de defesa. Não são ator político legítimo, só que isso não se verificou nos últimos quatro anos. Isso cria uma tensão. Do ponto de vista legal e da arquitetura do sistema político brasileiro isso é consequência do ativismo que setores das Forças Armadas vêm sustentando, no mínimo, desde 2018, desde o famoso tuíte do general Eduardo Villas Boas (então comandante do Exército, no qual criticava decisão do Supremo às vésperas do julgamento de hábeas corpus de Lula), que os militares resolveram se colocar como agentes políticos.
Ali foi o ponto de inflexão das relações civis-militares brasileiras?
Foi quando as coisas se tornaram mais visíveis. Provavelmente, já havia uma movimentação anterior. Havia falas que o general Hamilton Mourão (vice-presidente e senador eleito pelo RS), quando estava no Comando Militar do Sul (em 2015, ele prestar homenagem póstuma ao coronel Brilhante Ustra, condenado por tortura), na época em que Dilma Rousseff era presidente. Depois, quando deu baixa do Exército, já estava fazendo campanha política naquela ocasião. O tuíte de 2018 (de Villas Boas) foi quando as coisas começaram a ficar mais evidentes de um processo que estava em curso. Bem ou mal, a gente vai ter de achar um jeito de reorganizar o campo político sem a presença de militares, que é o que deve acontecer em uma democracia.
Que papel teve a Comissão da Verdade, no governo Dilma, nesse cenário?
Ela foi muito mal recebida no ambiente militar desde que foi anunciada. Teve manifestações muito duras. Não faz muito sentido. O Brasil não fez uma justiça de transição, assumiu uma postura de que o tempo ia resolver todo o passivo da ditadura. A Comissão da Verdade não tinha poder de imputar nada a ninguém do ponto de vista criminal, só apurou fatos. Pode-se questionar a metodologia, mas ela produziu apenas um relatório. A reação foi muito desproporcional. O fato é que a Comissão da Verdade foi utilizada para mobilizar uma atitude contrária ao PT no meio das Forças Armadas.
Essa imagem do Exército que se coloca como poder paralelo, tutor da democracia, é histórica.
Há setores que acreditam que as Forças Armadas teriam um papel de tutelar, que teriam uma função moderadora (da política). Isso é um mito. Não está escrito nem na Constituição nem na arquitetura legal do Brasil que as Forças Armadas tenham esse papel. Elas são uma das várias burocracias especializadas do Estado, assim como os funcionários Banco do Brasil, da Caixa, do INSS, do Banco Central.
Esse seria o modelo de qualquer democracia, mas não é o que ocorre no Brasil.
Há essa crença de que os militares teriam um papel político. Eles não têm. As Forças Armadas não têm poder de representação. São executoras da política de defesa, é isso o que está na Constituição. Quem representa o povo brasileiro? São os parlamentares eleitos, nas Câmaras de Vereadores, nas Assembleias Legislativas, na Câmara Federal e no Senado. Quem deve governar? Os prefeitos, governadores e presidentes eleitos. É essa a arquitetura do sistema político, com o Poder Judiciário desempenhando suas funções. Por que em parte há essa crença (de papel moderador dos militares)? Em parte porque ainda não encaramos de forma bastante séria o caráter deletério que têm as ditaduras. É um problema que, no meio militar, especialmente no Exército, ainda se apresente o regime militar, a ditadura, como algo positivo. Não, ditaduras não são boas. E, mesmo assim, se sustentam mitos e meias verdades que volta e meia aparecem nas falas do Clube Militar, como por exemplo, que o o regime militar teria salvado o Brasil do comunismo, defendeu o país contra a esquerda armada. O golpe foi em 1964, as primeiras insurreições armadas começaram dois anos depois, em 1966. O regime durou até 1985, sendo que as últimas forças insurgentes foram debeladas em 1975, quando teve o famoso Massacre da Lapa, que dizimou o que havia sobrado do PCB. Dez anos depois de que haviam sido desmontadas as células insurgentes, o regime ainda existia. É uma narrativa que está desconectada da realidade, como também a do poder moderador é desconectada da arquitetura legal do país.
E essa decisão dos comandantes das forças de entregar o comando antes da posse. O PT entende como uma oportunidade de indicar seus nomes. Mas há outra interpretação que de que pode passar uma ideia de insubordinação. Qual a sua opinião?
Até o dia 31 de dezembro o comandante-em-chefe é Bolsonaro. Se ele assinar tanto a saída deles quanto a eventual nomeação dos outros, não haverá insubordinação do ponto de vista formal. É o princípio da continuidade administrativa. Ainda não entendi esse possível movimento.
Que perfil o senhor entende que deve ter o futuro ministro da Defesa?
O primeiro ponto que a gente tem de ter presente é que ministro é cargo político, em qualquer ministério. É um político, pode ser um parlamentar, um ex-parlamentar, ou seja tem de ser alguém que conheça os corredores de Brasília, que tenha habilidades políticas, que tenha um entendimento do que deve ser a política de defesa do próximo governo, quais prioridades, dotações orçamentárias, uma afinidade com esse político com a agenda de defesa do próximo governo, que entenda o que é a missão das Forças Armadas, e essa missão não envolve protagonismo político. Talvez o grande teste de habilidade para o próximo ministro será iniciar o processo de enquadramento dos diferentes atores vinculados às Forças Armadas ao regulamento disciplinar das três forças e a arquitetura legal e constitucional do país. Está circulando uma suposta petição de oficiais da ativa ao alto comando. Se for de verdade é sério. Porque oficiais da ativa não podem, pelo regulamento disciplinar das três forças, emitir opinião política. Senão, a gente volta aos tempos do Golbery, do manifesto dos coronéis. Mas isso é um problema, porque tem o caso Eduardo Pazuello, que participou de um ato político e não foi punido. Converteu-se ao campo político e se elegeu pelo Rio de Janeiro. A gente já tem um acumulado de ações que fomentam esse ativismo militar, que é danoso para a disciplina das Forças Armadas, para o funcionamento do sistema político. O desafio do próximo ministro é botar as coisas no lugar de onde nunca deveriam ter saído e fazer valer o regulamento disciplinar e a arquitetura legal e constitucional do país.
Há risco estrutural de ruptura constitucional hoje?
Eu diria que não, porque há consenso claro envolvendo os principais partidos políticos, as presidências das duas casas legislativas, os governadores eleito, os governadores em final de mandato, a grande imprensa. Já tivemos várias manifestações da sociedade civil a favor da democracia, das regras do jogo, a Febraban, empresários em favor da realização das eleições, das regras do sistema eleitoral, da validação dos resultados. Acho que não há risco de uma ruptura institucional, golpe. Isso não quer dizer que não haja turbulência, atores maliciosos, episódios de violência. Isso tem me preocupado.