O governo Vladimir Putin é pródigo em apontar o dedo e concluir rapidamente investigações, escolhendo os culpados segundo os interesses do Kremlin. Foi assim no final dos anos 1990, quando uma série de explosões extremistas encaixou-se perfeitamente no argumento que faltava para seu regime voltar a invadir o Cáucaso e mergulhar a Rússia na segunda guerra na Chechênia.
Só por isso, já valeria ficarmos com um pé atrás com a informação dos serviços de inteligência russos segundo os quais o atentado que matou Daria Dugina, filha do cientista político Alexander Dugin, conhecido no Ocidente como o ideólogo de Putin. Conforme as primeiras investigações, o ataque teria sido cometido por uma mulher ucraniana chamada Natalia Vovk, que teria entrado em território russo com a filha a bordo de um carro com placa de Donetsk, província separatista do país vizinho, que o Kremlin busca anexar. Ela teria morado, por um mês, no bloco de apartamentos onde vivia Daria e estaria no mesmo evento, no sábado, onde se encontraria o alvo. O carro da vítima explodiu.
A se confirmar essa informação, há três conclusões possíveis. Primeiro, a Rússia, orgulhosa de seu serviço de inteligência, estaria admitindo uma falha de segurança. Segundo, estaria utilizando-se desse ataque para pesar ainda mais a mão sobre a Ucrânia - e, em especial, sobre o Donbass -, onde há remanescente resistência do governo na luta contra os separatistas. Terceiro e mais importante: a Ucrânia teria perpetrado o maior e mais simbólico ataque à Rússia nesse conflito - aliás, justamente quatro dias antes de um dia importante. Nesta quarta-feira (24), completam-se seis meses da invasão russa e os 31 anos da independência ucraniana da antiga União Soviética.
A se confirmar a autoria, o ataque à filha do "mentor de Putin" - ainda que, na prática, Dugin não seja mais tudo isso - seria mais uma ação ucraniana atrás das linhas inimigas, depois de três ofensivas que sugerem uso de forças especiais nas últimas semanas: em 9 de agosto, explosões na base aérea de Saki neutralizaram pelo menos nove aviões de combate russos. Outros dois ataques, no dia 16, atingiram um depósito de munições em Maiske e na base aérea de Gvardeyskoe. Todos na Crimeia ocupada pela Rússia em 2014. Todos, sob suspeita de sabotagem. Aliás, há um deslocamento do conflito do Leste para o Sul nos últimos dias, mas esse é outro assunto.
Até agora, também a se confirmar a autoria ucraniana do atentado a Daria, a Ucrânia havia alcançado o território continental russo poucas vezes: no dia 22, um drone atingiu uma refinaria em Rostov, provocando um incêndio. Não houve registro de feridos. Também ocorreu uma série de ataques contra depósitos de combustíveis, instalações militares e de infraestrutura vital russa nos últimos dias. Em abril, um depósito de combustível pegou fogo na cidade russa de Belgorod, a 50 quilômetros da fronteira com a Ucrânia. Um vídeo mostrou o que pareciam ser mísseis caindo sobre a instalação e há suspeitas de que aviões ucranianos cruzaram o território russo para atacar um alvo.
A Ucrânia não admitiu ter realizado nenhuma das ofensivas, mas as usou para zombar da Rússia nas redes sociais. Zombarias à parte, as autoridades ucranianas tendem a mostrar certa satisfação com esses incidentes. Mas não as confirmam nem negam. Adotam uma tática comum nas relações internacionais: a "ambiguidade estratégica", adotada, por exemplo, por Israel, sobre seu programa nuclear - não nega nem admite que o tenha -, ou pelos Estados Unidos, que apoia a política de uma só China, mas auxilia Taiwan com armas. É uma estratégia baseada no cinismo. Mas funciona. No caso ucraniano, dar visibilidade a esse assunto - ou ganhar os louros de aplicar um golpe no inimigo - pode servir de argumento à Rússia para justificar uma escalada da guerra. Saber que o que se fez é mais importante do que anunciar. Na guerra, nem sempre a propaganda é alma do negócio.