A estação de trem de Lviv, na Ucrânia, é um microcosmos da guerra que se abateu sobre o Leste Europeu. Durante nove horas, na madrugada de quarta (2) para quinta-feira (3), GZH testemunhou os diferentes dramas que cercam o conflito e seus protagonistas. O medo, inclusive deste repórter, os limites humanos, a incerteza, o desespero e a solidariedade. Afinal, a guerra também desperta o melhor do ser humano.
Com a cidade sob toque de recolher a partir das 22h, a fonte que me buscaria na estação não poderia mais se deslocar de carro. Assim, precisei ficar entre 23h e 8h do dia seguinte entrincheirado em um canto da estação, ao lado da porta principal da sala de espera número 2.
Para poupar as baterias dos celulares, afinal, seriam fundamentais na hora que meu contato viesse me buscar, decidi desligar os aparelhos. O risco é a mente divagar.
Estamos apenas nos primeiros minutos da jornada. Aparece o medo: qualquer barulho estranho vindo do exterior do prédio despertava a minha atenção. A simples limpeza de um contêiner, para uma mente atormentada pelas imagens dos últimos dias, pode parecer um estampido de explosão distante.
Olho ao redor e observo seres humanos amontoados sobre malas, disputando a soco uma tomada para carregar o smartphone ou uma vaga no último trem da noite para a Polônia. Muitos esperaram 12, 18 horas para embarcar. Como não entrar no trem depois de tamanho esforço humano? Como assim crianças e mulheres têm preferência? Sempre foi assim na guerra, mas vai explicar para uma esposa que deixa o marido na estação porque ele não pode embarcar porque tem de lutar contra as tropas de Vladimir Putin?
Uma senhora a minha frente não consegue sair do prédio e enfrentar o frio para chegar aos banheiros químicos. A temperatura está em torno de - 1°C às 4h. Então, sob o olhar condenatório de muitos, ela urina ali mesmo, no saguão.
Na sequência, passo o olhar rápido sobre as dezenas de bebês dormindo sobre sacolas cheias de roupa que, unidas, viram berço. Evito olhar de novo porque a impressão não é boa. Um homem cuida de um cão de pequeno porte. Uma menina envolve o gato dentro do moletom a ponto de ficar apenas a cabeça do bicho à mostra. Sim, não fica ninguém para trás.
O filho de um senhor, ao meu lado, sacode o pai, que está coberto da cabeça aos pés com um cobertor. O idoso se assusta, acorda, calça o sapato. É hora de tentar partir.
Um casal, ele programador, ela psicóloga, conta que deixaram Kiev porque os bombardeios estavam insuportáveis. Ele parou de trabalhar no primeiro dia dos ataques. Ela, por razões óbvias, prosseguiu com as consultas por mais alguns dias.
— Decidimos vir para Lviv até a guerra terminar. E estamos aqui para receber amigos que estão vindo — diz ele.
São 5h, e, a essa altura da madrugada, a estação está muito suja. São restos de sopa nos pratos de plástico, sobras de doces e muito lixo seco. Um odor fétido toma conta do ar. A psicóloga busca um sanduíche para o marido e lembra de trazer um para mim. Mas, diante das condições insalubres do ambiente, preferimos enfrentar a neve lá fora.
Lviv amanhece branca. A estação está ainda mais lotada por aqueles que buscam abrigo e por aqueles que buscam um trem para fora do país. Toda a estação registra chegadas e partidas. No caso, a cidade é um hub de trilhos que interconecta o país que pode deixar de existir: passageiros chegam do inferno de Kiev, caem no limbo de Lviv sem a garantia de chegar ao céu da Polônia.