Cidadã do mundo, a embaixadora aposentada Leda Lucia Camargo conheceu reis e rainhas, líderes políticos que marcaram a história do final do século 20 e início do 21 e, por vezes, enfrentou o desafio de retirar brasileiros de regiões atingidas por crises e catástrofes naturais.
Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e com mais de 50 anos de diplomacia, ela poderia escrever sozinha um livro sobre sua trajetória no Exterior, com destaque para os cargos de embaixadora em Maputo (Moçambique, de 2004 a 2008), Praga (República Tcheca, 2008 a 2011) e Estocolmo (Suécia, 2011 a 2014). Mas, inquieta com o desconhecimento geral do público sobre o que faz um diplomata, Leda decidiu convidar outros 25 colegas, aposentados e na ativa. O resultado é a obra Os Diplomatas e suas Histórias (Editora Francisco Alves), que reúne nomes como Rubens Ricupero, Marcos Azambuja, José Botafogo Gonçalves e Celso Amorim.
Nesta entrevista, ela fala sobre o livro, revela alguns bastidores e analisa a imagem do Brasil lá fora.
Por que escrever um livro sobre os diplomatas?
As pessoas desconhecem o que fazemos, os diplomatas, e, como servidora do Estado, achei que cabia explicar ao público a prática dessa honra maior que se possa ter, a de representar o país. Essa é uma tarefa análoga à dos esportistas, é como se estivéssemos em uma permanente Olimpíada. Além do mais, ninguém quer ser médico, general, sem ter o preparo devido, mas às vezes quer ser diplomata, embaixador, e era preciso revelar um pouco de nossos momentos dramáticos e imprevistos.
Diplomatas lidam com temas que vão de vistos e vacinas ao preço dos vinhos, de aviões a certidões de casamentos, promovem as exportações, a cultura e o turismo, atraem investimentos e às vezes salvam cidadãos no Exterior. Mas só aparecem (na mídia) quando dá problema.
Esse desconhecimento sobre o que faz um diplomata não se deve à pouca atenção que a opinião pública brasileira presta a temas de relações exteriores?
Política externa é tema de escasso apelo popular porque o público não percebe que os erros e acertos repercutem no cotidiano da população e, como dizia o chanceler Lampreia (Luiz Felipe Lampreia), alcançam as prateleiras dos supermercados. Os diplomatas intermedeiam temas inimagináveis, de aviões a certidões de casamentos, se envolvem com quase todos os assuntos referentes a interesses das pessoas, de vistos e vacinas ao preço do vinho ou do pão, negociam a importação do trigo e a exportação da carne, a apresentação do cinema e artistas brasileiros e os contatos dos cientistas com seus contrapartes no Exterior. A diplomacia, ao promover as exportações, a cultura, o turismo, atrair investimentos, está defendendo o emprego de seus concidadãos, a imagem positiva do país, sem esquecer que protege, e às vezes salva, milhares de nacionais quando no Exterior - hoje mais de 3,5 milhões de brasileiros. E isso só aparece quando dá problema.
A senhora diz que diplomatas são pessoas que atuam nos bastidores. Como foi o processo para “convencer” os colegas a escreverem histórias normalmente não contadas sobre seu trabalho?
É uma profissão por si discreta, mas um livro em conjunto, inédito, relatando a complexidade de nosso cotidiano, alegrias e dificuldades, desmistificando preconceitos através de crônicas inusitadas e até tensas, convenceu 25 amigos, entre tantos que podiam também estar. Aparecem interlocutores deliciosos, como Imelda Marcos, Oscar Arias, o nosso Moacyr Scliar, que foi durante 20 anos assistente de meu pai na Faculdade Católica de Medicina, e outros que a história só produz a cada década, como Nelson Mandela, Jorge Luis Borges, Yasser Arafat, ao lado de funcionários próximos pelos quais se cria profunda amizade. De relatos de vexames involuntários, que qualquer um na vida passa, provam os relatos que com medo e coragem enfrentam-se também perigos e todo tipo de batalhas nessa profissão nômade que de fácil nada tem.
Por que o convite a diplomatas de fora do Brasil?
Pessoas que buscam essa profissão são parecidas em preparo e personalidade, em qualquer lugar do mundo, vivem situações similares — o que facilita o diálogo. Eles têm os mesmos objetivos de defesa de seus países. Um diplomata inglês tem mais a ver com um colega argentino do que com um conterrâneo engenheiro. Por isso, as amizades que se estabelecem são sólidas e o tempo e a distância não separam. Pretendi que os textos no livro revelassem isso. O querido colega argentino, por exemplo, relata o amor de um diplomata estrangeiro pelo Brasil e mais, grande amigo de Francisco, levará ao Papa nosso livro para benção. Já é um bom motivo, não?
No capítulo sobre o seu trabalho, a senhora explica histórias como embaixadora em Maputo, Praga e Estocolmo. Mas antes passou por muitos outros lugares. Como foi a sua trajetória até o ingresso no Instituto Rio Branco. Por que decidiu ser diplomata? Teve apoio familiar? Ou os pais não queriam?
E pais querem os filhos longe? (Risos) Mas sempre me apoiaram, afinal o vício veio de ter morado na infância na Venezuela, quando meu pai foi professor médico de Saúde Pública da OMS. Como diz o embaixador Jorge Ribeiro, melhor é ser familiar de diplomata, aproveita as vantagens sem sofrer os dissabores. Na faculdade de Direito na UFRGS. sempre gostei de Direito Internacional, o que me levou a estudar em Haia e depois em Paris, mais pelo francês. Rodei nessa língua no primeiro concurso ao Instituto Rio Branco, onde o que mais eliminava era mesmo o português. Derrota fortalece, passei a estudar 10 horas por dia em vez de oito horas. Passei em terceiro lugar, entre milhares de candidatos.
A senhora cita que era possível manter política externa independente mesmo sob regime militar. Como era defender as posições do Brasil naquela época?
Pensar no seus próprios interesses e não pela cabeça dos outros, respeito aos direitos humanos e ao que outros países decidem para si, repúdio à desigualdade entre Estados e ao racismo e o que anda meio esquecido, o inciso IX da Constituição: “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”, e integração dos povos da América Latina. O “pragmatismo responsável” defendido pelo Itamaraty possibilitou o reconhecimento de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau, restaurar relações com a China, o acordo nuclear com a Alemanha, romper o que para nós era negativo acordo militar com os Estados Unidos. E quem veio a Brasília em 1978? O presidente Jimmy Carter. E dezenas mais: Helmut Schmidt da Alemanha, Giscard d´Estaing da França, os futuros imperadores do Japão e por aí vai. Mesmo sob regime militar, o Brasil atraía o interesse de inúmeras importantes autoridades estrangeiras, defendia seus princípios de independência ao mesmo tempo que mantinha boas relações com todos, sem discriminações.
A gente sabe pouco sobre outras culturas e tem a péssima tendência a julgar rápido e em cima do próprio desconhecimento. Ríamos do europeu que pensava que Buenos Aires era a capital do Brasil, mas três ou quatro perguntas desabam quaisquer certezas sobre África, Ásia, Caribe. Preconceito é resultado de falta de informação, baseado em generalizações apressadas. Se, de forma geral, intolerância é muito feio, em diplomacia é algo inaceitável.
A senhora conta no livro os vários encontros com autoridades, reis, rainhas. Como foi o encontro com o príncipe Charles?
Foi simpático e acessível durante os oito dias que viajamos pelo Brasil. Veio acompanhado de apenas um diplomata e um segurança da Scotland Yard. Em jantar na prefeitura do Rio, em que a Beija Flor lhe fez apresentação, sambou feliz com a famosa Pinah, embora os ingleses tenham condicionado a que ficássemos ao seu redor. Maravilhou-se com razão ao visitar nosso Instituto Butantã, bem como com a flora e as frutas da Amazônia. Quando desejou falar em francês comigo, teve a modéstia de desistir, desculpando-se por não ter a fluência suficiente. Surpreendia a todos quando estendia a mão, pesadíssima, de aparente trabalhador de terra, desmentido pelo anel de príncipe de Gales no dedo mindinho.
Graça Machel, ativista moçambicana, viúva de Nelson Mandela e Samora Machel, lhe chama de irmã. Como se conheceram?
A Dra. Graça procurou-me porque precisava de vagas em faculdades brasileiras para estudantes moçambicanas e obtive a boa vontade da Ulbra em obtê-las. Meus amigos moçambicanos, como Marcelino dos Santos, Mia Couto, Malangatana e outros eram também os seus. Participei com ela de diversos debates no Centro de Estudos Brasileiros, que em Maputo era talvez o principal ponto de referência intelectual da capital. Princípios, interesses similares nos aproximavam, e o esforço que a embaixada fazia para lá estabelecer a fábrica de medicamentos e antirretrovirais, com tecnologia de nossa admirável Fundação Oswaldo Cruz, e que foi bem sucedido, ganhou de vez o apreço de Graça. Quando me chamava de “irmã”, o que mais me honrava era, como embaixadora, que tal demonstração de carinho revertia para o Brasil. Quando veio a Porto Alegre, em 2019, tive enorme alegria em tê-la no meu apartamento.
Outra história que chama atenção, e que até agora não havia sido contada, é sobre as negociações para o translado do corpo do ídolo Ayrton Senna para o Brasil, após o acidente em Ímola.
Dói só de lembrar. Na embaixada em Roma tive de lidar com a imprensa, segurando o pranto, enquanto do outro lado, sem poder revelar, acordava providências por telefone com médicos do Hospital Maggiore de Bologna e ajudava meu embaixador Carbonar a obter das autoridades locais um avião da Força Aérea Italiana para o traslado até Paris, para o retorno do meu herói para São Paulo pela Varig. A comoção na Itália e no Brasil, aquelas dolorosas tratativas, a avalanche de telefonemas por informações e de mensagens de pêsames, só não desestabilizavam por completo porque mantive em mente que o jovem de 34 anos perdera a vida fazendo o que mais gostava nela, o que não só fazia com brilho, mas com amor. Foi grande o desgosto de ter de trabalhar com aquela dor que sabia ser a de cada brasileiro e a de todo nosso país.
Como surgiu a amizade com a rainha Silvia?
Por respeito à amizade, e ela é uma pessoa extremamente delicada e simples, prefiro não falar muito sobre isso. Mas resumindo: amigos paulistas e língua em comum, idade aproximada, fundações criadas por ela para proteção a crianças (a World Childhood tem também sede em São Paulo) e de tratamento de demência acabaram por nos aproximar. Fui surpreendida ao chegar a Estocolmo com certas reportagens que circulavam sobre o pai alemão dela, e conhecendo bem nosso período Vargas, acabei por descobrir documentos valiosos que provam uma história muito diferente das denúncias que maldosamente corriam. Esse tema exponho no livro. Um dia ela virá a Porto Alegre, Já me disse: o RS é líder, pela condução do desembargador Daltoé Cezar, em salas de depoimento especial para crianças, um de seus grandes interesses, e ela tem três primos aqui.
O que aprendeu na África, no convívio com o rei da Suazilândia?
A gente sabe pouco sobre outras culturas e tem a péssima tendência a julgar rápido e em cima do próprio desconhecimento. Ríamos do europeu que pensava que Buenos Aires era a capital do Brasil, mas três ou quatro perguntas desabam quaisquer certezas sobre África, Ásia, Caribe. Sabia que os chefes da nação suazi remontam ao século 13? Não precisa saber, o importante é ter consciência que preconceito é resultado de falta de informação, baseado em generalizações apressadas. Uma pessoa com estudo, arejada intelectualmente, tem instrumentos para saber que não deve julgar com seus valores uma cultura que não é a sua. Já incorri nesse erro e aprendi que se, de forma geral, intolerância é muito feio, em diplomacia é algo inaceitável.
Na época da ditadura, um militar preocupado com o que se dizia do governo ouviu de um embaixador brasileiro: “Tenho uma sugestão, acabem com a tortura que melhora”. Os meios de comunicação cumprem sua missão insubstituível de relatar o que ocorre sem medo da acusação infundada de visão distorcida. O que uma pessoa faz para preservar sua boa biografia e reputação: procura enganar os outros ou comporta-se bem pelo bom exemplo?
A senhora dedica uma parte do livro aos “imprevistos” da profissão. Qual experiência destaca?
O embaixador Ricupero relata o risco de ter sido abatido pela FAB um avião da Cubana de Aviacion em 1982. Irene Gala escreve sobre tratar de esquife para soldados brasileiros de missão de paz da ONU em Angola. Marcia Maro estava no consulado em Buenos Aires atingido pelo atentado à embaixada em Israel em 1992. Macieira fala sobre como dar solução a 3 mil funcionários brasileiros “presos” no Iraque. Abdenur abrigou dezenas dentro da embaixada em 1989 por ocasião de Tiananmen (Massacre da Praça da Paz Celestial, na China). Katia Gilaberte estava no meio do maior furacão do Caribe em 1980 e do atentado ao metrô de Moscou em 2004. Eu, em 2005, vivi situação com grave risco ao recusar vistos a traficantes. A maioria das histórias são de imprevistos, como a profissão nos impõe e como é a vida.
Muito se fala do glamour da profissão: encontro com autoridades, coquetéis, elite cultural. É assim mesmo?
Essas “batatas fervendo” são glamour? A indústria cultural e esportiva ajudam o PIB do país, além de ser parte da educação e alegria do povo, portanto motivo de orgulho da nação. E diplomata lida com grandes figuras porque tem braços abertos para tudo facilitar aos brasileiros. Eu não qualificaria como glamour, mas como privilégio decorrente de esforço. Então, como não ter prazer em ter recebido, em Maputo, Falcão, Regina Casé, Martinho da Vila; em Praga, meu queridíssimo Borghettinho, Marcia Haydée, Nelson Pereira dos Santos, Nelson Freire; em Estocolmo, Caetano Veloso, Sebastião Salgado? É honra, sim.
Qual é o lugar do Brasil no mundo?
O papel do Brasil foi e continua sendo o mesmo, o de defender fora os interesses que lhe servem internamente, ou seja, o desenvolvimento econômico sustentável e social, tecnológico e científico, cultural, a defesa dos direitos humanos e do ambiente com combate a mudanças climáticas, desmatamento e perda da biodiversidade. Nosso espaço cultural e histórico é a América Latina, com a qual precisamos intensificar a integração, como manda o artigo 4 da Constituição. Retomar a cooperação é essencial, valores e princípios são tão importantes quanto comércio. A África precisa ser parceira, ter presente que a Ásia é o futuro, sem descurar dos EUA e da Europa, o que o Itamaraty jamais esqueceu, aliás. O Brasil é uma potência média, um dos maiores mercados do mundo e dos mais ricos em recursos naturais, e tem tradição de não-alinhamento. O Itamaraty sempre soube e sabe disso, precisa de liberdade e de apoio para atuar com a capacidade mundialmente reconhecida que tem.
É possível reconstruir a imagem do Brasil, tão desgastada lá fora?
Em julho de 1993, ocorreu a chacina de oito jovens por milicianos na Candelária e o massacre de 16 ianomâmi (único crime no Brasil julgado como genocídio). O clamor internacional levou o presidente (Itamar Franco) a dizer que iria defenestrar seis embaixadores em principais capitais porque não haviam contido a reação da imprensa, e um era o meu, em Roma. Na época da ditadura, um militar preocupado com o que se dizia do governo ouviu de um embaixador brasileiro: “Tenho uma sugestão, acabem com a tortura que melhora”. Os meios de comunicação cumprem sua missão insubstituível de relatar o que ocorre sem medo da acusação infundada de visão distorcida. O que uma pessoa faz para preservar sua boa biografia e reputação: procura enganar os outros ou comporta-se bem pelo bom exemplo? A imagem externa reflete o que acontece internamente, e uma diplomacia séria e digna sabe que o mundo não é ingênuo. Sem dúvida, tem obrigação de apresentar no Exterior as inúmeras coisas maravilhosas que o Brasil tem, mas também se esforçar para mudar o que não convém aos interesses do país. A inserção internacional depende desse respeito, dessa coerência de atitude.
O Itamaraty tem fama de ser um ambiente dominado por homens. Quais os desafios a senhora vivenciou?
O Itamaraty não é diferente de nenhuma instituição da sociedade machista. Chefes homens são persistentes, têm fibra; mulheres são teimosas, complicadas, “descontroladas”. Mulher que escolhe a diplomacia é forte, sabe que a carreira é difícil, pelos desafios, mudanças, em que o lado afetivo sofre preço alto. Um namorado disse que me acompanharia não importava o país, desde que alugássemos um apartamento em que coubessem seus nove pianos. Rompemos antes que problema maior se criasse. Tive chefes brilhantes, inteligentes não são preconceituosos, com exceção de um, em Brasília, a quem virei as costas e no dia seguinte mudei de divisão. Hoje, é permitido que casal de diplomatas trabalhe no mesmo posto. Reações machistas se enfrentam com o mesmo garbo e desprezo que a qualquer outra atitude ignorante e mal educada. Não há hierarquia que, por atitude incorreta, não possa e não deva ser confrontada. Mas, por favor, também nada de vitimismo, como às vezes acontece.
Por que voltar a morar em Porto Alegre após se aposentar?
Pensei escolher um lugar com boa qualidade de vida e onde tivesse mais afetos. Poderia ser Rio, Paris, Maputo, mas nenhum ganhava da terra onde nasci, onde sempre voltei nas férias e onde viviam amigos, meus adorados sobrinhos Nelson Ernani e Alessandra e irmã Rejane, que dolorosamente acabo de perder. É também onde tinha um apartamento para desfrutar e casa nas deliciosas Gramado e Xangri-lá. Às vésperas do retorno, titubei em “casar” com um austríaco com um famoso castelo, e desisti bem a tempo, pois não há fantasia, fortuna, entusiasmos passageiros que perdurem a longo prazo e possam substituir o afeto raiz.