No momento em que bilionários alçam voos espaciais em busca de realizar o sonho de conhecer outros planetas, a leitura de "Nunca Sozinho – A Vida na Coreia do Norte pelo Olhar de um Brasileiro", do diplomata Cleiton Schenkel, é uma oportunidade de visitar, em segurança e por meio de uma narrativa fluida e cheia de curiosidades, um mundo à parte, sem sair da Terra. Há 15 anos no Itamaraty, com passagens por Harare (Zimbábue) e Genebra (Suíça), o gaúcho de São Leopoldo é um dos brasileiros que mais conhecem a nação que, volta e meia, põe o mundo em alerta por conta de testes nucleares. Por mais de dois anos, Schenkel viveu com a mulher e o filho na capital norte-coreana, Pyongyang. Nesse período, eram a única família brasileira no país.
De volta ao Brasil em 2018, o diplomata, hoje lotado no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, decidiu transformar a experiência como encarregado de negócios em Pyongyang no livro, prefaciado pelo jornalista de GZH David Coimbra. Desde o início da obra, percebe-se uma dualidade, que retrata as distintas formações acadêmicas de Schenkel: a Comunicação Social e as Relações Internacionais. Na primeira parte, o leitor viaja por meio da prosa detalhada, que leva a conhecer detalhes do cotidiano dos norte-coreanos, totalmente regrado pela ditadura do Partido Comunista e o culto ao seu líder Kim Jong-un.
Schenkel preocupa-se em desmistificar estereótipos, como o de que há controle a todo momento para circular pela capital. Em Pyongyang, ele e a família podiam andar por quase todos os espaços. Apenas em alguns locais, como museus, galerias e, estranhamente, o metrô, a visita demandava pré-agendamento e a companhia de guias locais. Essa liberdade, no entanto, não se estende aos turistas.
Se por um lado esse “passe livre” reduzia a percepção de isolamento, por outro produzia situações curiosas em um país onde não há miscigenação e a presença de ocidentais é rara. A aparência do brasileiro já denunciava a condição. Quando a família chegou, o filho de Schenkel tinha menos de três meses. “Se conviver com estrangeiros já era novidade, imagine conhecer um bebê ocidental. Ele parecia uma minicelebridade, sempre cercado de curiosos”, lembra o autor, no livro.
Outro aspecto curioso é a cobertura esportiva. Schenkel esteve no país durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e a Copa do Mundo da Rússia. Não foi possível assistir a nenhuma dessas competições ao vivo. A regra é que as emissoras só devem transmitir, posteriormente, o que julgarem conveniente ou inofensivo – para o regime. Os jogos da equipe nacional, por exemplo, só são mostrados quando o time vence. Quando a seleção ou um atleta que representa o país perde, os jornais silenciam. A ordem criava situações inusitadas. Por exemplo, se um jornal informasse que a Coreia do Norte havia vencido duas partidas, e a competição, mais tarde, fosse concluída sem que o país tivesse sido campeão, seria óbvio que, em algum momento, a equipe perdeu – mas ninguém ficava sabendo nem questionava quando isso ocorreu.
O controle sobre a vida dos cidadãos é exercido de diversas formas. Uma delas é a proibição de contato com influências que possam ser ideologicamente nocivas ao governo. Entre as medidas tomadas com esse fim, conta o escritor, está a divisão das linhas telefônicas de acordo com a situação do usuário. Tanto no caso de aparelhos fixos ou móveis, as linhas usadas pelos locais e as destinadas aos estrangeiros não se comunicam. O detentor de um número local pode ligar para outros locais, mas não para um estrangeiro.
Em trechos como esse aparece o lado jornalista de Schenkel, com ricas descrições de cenário e observações que ele foi recolhendo ao longo dos anos no país.
Mas há outro, o olhar do diplomata. A segunda parte da obra é dedicada a um mergulho na economia e na política locais, com maior densidade analítica. Embora menos midiáticos do que testes nucleares, desfiles militares e a saúde do presidente, os aspectos econômicos são fundamentais para se compreender o estado das coisas no país. Schenkel observa que as relações de mercado, impulsionadas pelo comércio informal, podem influenciar valores morais, como o machismo muito presente, e até ameaçar o controle rígido sobre a população.
Ao final, o autor ainda avalia a possibilidade de reunificação das Coreias. É bom lembrar que os dois territórios ainda estão tecnicamente em guerra. O conflito entre 1950 e 1953 foi encerrado por cessar-fogo, mas sem um acordo de paz definitivo. O paralelo 38, onde situa-se a divisão, é tido como a fronteira mais militarizada do planeta.
Outra curiosidade é que, uma das primeiras lições que se aprende é que ambos os lados resistem, em termos formais, a reconhecer a divisão da pátria, referindo-se a apenas um país na península. No aeroporto de Pyongyang, por exemplo, os visitantes são recebidos com um “bem-vindo à Coreia”, e a história não é diferente em Seul.
Para quem deseja um voo panorâmico sobre o país mais fechado do mundo, deixando-se levar por observações em primeira pessoa, ou prefere um mergulho mais aprofundado nas entranhas da nação, até como recurso acadêmico, o livro de Schenkel é ótima pedida.
"A essência do ser humano não é muito diferente em qualquer lugar que se vá"
Em entrevista à coluna, o diplomata Cleiton Schenkel conta detalhes da obra, escrita a partir das observações e interações que teve no período em que trabalhou na Coreia do Norte.
Qual foi o primeiro estranhamento ao chegar para trabalhar na Coreia do Norte?
É até difícil apontar um aspecto. Mas, se tivesse que escolher um ponto que mais chamou a atenção, seria o culto à personalidade dos líderes. É impossível, por exemplo, dar um passeio pela capital sem deparar com dezenas de imagens do pai e do avô do atual líder, em painéis, outdoors ou nos broches que as pessoas usam. Isso sem falar nos ritos que eles seguem para homenageá-los, como colocar flores nos monumentos ou iniciar discursos com a citação de um integrante da família Kim. Tudo isso é tão exagerado, para os nossos padrões ocidentais, que leva um tempo para a gente se acostumar.
O trabalho do diplomata pressupõe interagir com a população local e autoridades, mas em um país com sistema político tão fechado isso parece difícil. Como era a relação com as autoridades?
Quanto aos contatos oficiais, a relação em Pyongyang não era muito diferente da que existe em outras cidades, com encontros e reuniões frequentes. Ainda que a maioria desses contatos fosse formal, havia também ocasiões de confraternização, como jantares e recepções. Mas essa era toda a interação que nós, estrangeiros, tínhamos com os norte-coreanos. No restante, havia uma regra não escrita de evitar conversas pessoais, e isso se aplicava até mesmo aos funcionários das embaixadas.
Que imagem os norte-coreanos têm do Brasil?
Em geral, muito positiva. Como costuma ocorrer em quase todo o mundo, o Brasil é visto com grande simpatia. Mas conhecem pouco do nosso país. Como regra geral, os norte-coreanos não têm muita curiosidade sobre outros lugares. Isso tem a ver com o grau de fechamento do regime e a forma como eles foram ensinados, desde cedo, a viver como se o mundo se limitasse às fronteiras de seu país.
No livro, fica claro que vocês mantinham um estilo de vida familiar limitado. Quais eram as atividades de lazer?
A sensação de isolamento, que foi um dos aspectos mais fortes em Pyongyang, se dava em dois níveis. Além de estarmos em um país com pouco contato com o resto do mundo, nossas relações pessoais eram limitadas a um grupo reduzido, dentro do bairro diplomático. Por isso, os momentos de lazer eram quase sempre em eventos pequenos na vizinhança ou com passeios pelo bairro, além de assistir filmes e ouvir música em casa, pela internet.
Como sua família lidava com essas limitações, em especial as crianças?
Quando chegamos, meu filho tinha três meses, o que era mais um motivo para passarmos muito tempo em casa. Acho que ele foi o que menos sentiu, já que não conhecia outra realidade. Vendo em retrospectiva, acho que foi uma sorte ele estar naquela fase...
Como é o acesso à internet no país?
Parece surpreendente, mas tínhamos acesso amplo, com poucas páginas proibidas – só as de jornais da Coreia do Sul e de sites especializados dos EUA. Até Google, YouTube e Facebook eram liberados. A explicação para isso é que as linhas de telefone e internet que tínhamos eram distintas das que os locais utilizavam. Para os norte-coreanos, o acesso era restrito às páginas sancionadas pelo regime.
No seu livro aparece bastante a questão da disciplina como aspecto cultural do povo. A população tem a percepção de que vive sob um regime autoritário?
É difícil saber o que passa no íntimo dos cidadãos. Acredito que grande parte da população hoje tem noção dos anacronismos do sistema em que vive. Mas certamente há aqueles que se resignaram a seguir as únicas regras que conheceram desde criança, sem questionar. De qualquer forma, na superfície, todos fazem questão de se mostrar fiéis ao regime, sem transparecer qualquer sinal de falta de convicção.
Qual foi o seu maior aprendizado no país?
Acho que foi que a essência do ser humano não é muito diferente em qualquer lugar que se vá. No período que passei por lá, vi muitas ocasiões em que os norte-coreanos se divertiam, do modo que podiam, como em qualquer outro lugar, mesmo com todas as dificuldades da vida controlada que levam.