Deus vult!
A expressão que faz parte do glossário do agora ex-chanceler Ernesto Araújo desde o primeiro dia no Itamaraty também integra o anedotário dos colegas da Casa de Rio Branco nesses dois anos em que o ministro esteve à frente da diplomacia brasileira.
Utilizado em redes sociais por Araújo, o termo, que em latim significa "Deus quer!", foi empregado originalmente pelo papa Urbano II ao anunciar a Primeira Cruzada, em 1095, para libertar Jerusalém dos infiéis.
Nos bastidores do ministério, acostumado ao pragmatismo, profissionalismo e laicismo, a expressão passou a ser vista como símbolo, pelo apelo medieval, de uma gestão que, ao prometer "a desideologização das relações exteriores", acabou por se tornar a mais ideologizada da história recente do Brasil.
Até assumir o ministério, o porto-alegrense Araújo nunca ocupara posições estratégicas no Exterior nem gozava de ascendência intelectual entre os colegas mais jovens - qualidades fundamentais para ocupar o posto de herdeiro do grande Barão do Rio Branco. Seu passaporte para o mais alto cargo da diplomacia brasileira fora o apoio do guru do presidente e de seus filhos, o escritor Olavo de Carvalho, de quem absorveu as ideias que lastrearam as relações exteriores brasileiras e por pouco não destruíram os pilares da tradição diplomática brasileira.
Sob Araújo, o Brasil contrariou algumas das características que, historicamente, fizeram os diplomatas brasileiros serem reconhecidos no Exterior. Inspirado na alt-right americana, de Steve Bannon, e alinhada com o então governo Donald Trump, a chancelaria se afastou dos grandes arranjos internacionais, desdenhando - e por vezes debochando - de organismos multilaterais representados pelo sistema das Nações Unidas e suas principais agências, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
No fundo, havia uma visão obtusa das relações internacionais como um campo dominado por um suposto globalismo a ser combatido. Nessa batida, a cruzada de Araújo envolvia o Brasil se posicionar contra temas como aborto, direitos humanos e causas LGBT+, votar acriticamente alinhado aos Estados Unidos e a Israel e imprimir uma narrativa anti-China. Mesmo em casos em que os interesses nacionais brasileiros estavam em jogo, como no plano de transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, ideia que quase levou os países islâmicos a deixarem de importar carne halal do Brasil.
Com a China, a jogada ideológica mais ousada e equivocada de Araújo, o tema acabou custando ao chanceler o próprio cargo. Araújo importou na íntegra a cartilha de Trump, acusando Pequim de ter criado o coronavírus, inventando termos como "comunavírus" e chegando a sugerir que o regime chinês trocasse seu embaixador no Brasil. A chancelaria chinesa ignorou. Seria apenas uma tentativa de intromissão em um assunto interno de outro país, não fosse esse outro país o principal parceiro econômico brasileiro, de quem o agronegócio depende.
A visão nos últimos dias no Itamaraty era de satisfação com a possível saída do chefe. Sob anonimato, os diplomatas afirmam que Araújo queimou o capital diplomático acumulado ao longo de décadas pelo país. Além disso, há claras evidências de erosão da imagem brasileira lá fora graças a sucessivas crises, como dos incêndios da Amazônia; na tentativa de emplacar Juan Guaidó na Venezuela, de novo para agradar à Casa Branca trumpiana; ao implodir pontes com aliados, como França e Argentina; e no momento em que o país isola-se como laboratório natural de um vírus em descontrole.