Na geopolítica da vacina contra o coronavírus, a briga é para ser o primeiro beneficiado com o produto. Afora os interesses econômicos dos grandes laboratórios em sair na frente com a imunização - e assim lucrar bilhões de dólares -, há, entre os governos, uma disputa para garantir os lotes para suas populações. E, assim, salvar vidas - e a economia, evitando novos lockdowns.
Por isso, Donald Trump se apressou em fechar a compra de caixas de doses de diferentes laboratórios, como Pfizer e Johnson & Johnson, para ficarmos com dois com os quais a Casa Branca já garantiu milhões de doses para os americanos, antes mesmo de essas vacinas serem definidas como as "campeãs" da corrida pelo título de eficácia e segurança. A União Europeia (UE) também corre para fechar acordos de compra.
Ninguém quer ficar atrás quando a vacina sair. Mas há aqueles países que não detêm tecnologia ou dinheiro para dar ao menos um alento a sua população de quando terão a imunização. Não dispõem de empresas capazes de desenvolver o produto ou de orçamento para importar das grandes empresas farmacêuticas.
Ou seja, enquanto o presidente Jair Bolsonaro rejeita a vacina chinesa, centenas de governos e milhões de pessoas em nações da África, Ásia ou América Latina dariam qualquer coisa para colocar a mão em um lote de imunização, venha de onde vier, sem olhar a bandeira impressa nas caixas.
A questão que mais preocupa o planeta é: uma vez descoberta a vacina, quem receberá a imunização primeiro? Como será a distribuição? O acesso será universal? Quem pagará a conta?
Bolsonaro, ao abrir mão da vacina chinesa, subverte a lógica dessa corrida, jogando fora, por motivações ideológicas, um pragmatismo que poderia colocar a nação, com 160 mil mortos por covid-19, descer do pódio das três com maior número de infectados e óbitos, e subir o degrau mais alto do honroso primeiro lugar entre as populações com maior percentual de imunização - aliás, não se esperaria menos de um país que, nas últimas décadas, desenvolveu programas de vacinação de fazer inveja a potências desenvolvidas.
O pragmatismo brasileiro, tão saudável outrora na diplomacia e no comércio exterior, estendido à questão sanitária, poderia salvar milhões de brasileiros, tudo indica, no próximo ano. Seja de onde for a vacina: da China, da Rússia, do Reino Unido, dos Estados Unidos, de Israel.
Política externa é resultado de pressões domésticas e coerções e constrangimentos internacionais. Internamente, a rusga entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, levou o presidente a recuar e a desautorizar seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Mas a questão externa não pode ser descartada. Bolsonaro, por meio de sua visão atravessada e simplista do jogo político, pensa matar dois coelhos com uma só cajadada: fustigar seu adversário interno e provável rival nas eleições de 2022 e, ao mesmo tempo, agradar Donald Trump, coerente com o alinhamento automático ao vizinho do Norte, rival geopolítico e econômico da China. Tudo à custa da saúde dos brasileiros.