Há lições importantes a serem aprendidas com a volta da esquerda ao poder na Bolívia, após 11 meses de um governo transitório, com legitimidade questionável em razão do caos político instaurado a partir do movimento que levou à renúncia Evo Morales, em 2019.
A primeira é que o Movimento ao Socialismo (MAS) precisou se afastar de seu histórico líder para retomar o Palácio de Quemado. Ficasse apegado a seu mentor, um populista formado na escola ditatorial chavista, a legenda teria sido jogada às catacumbas da história política latino-americana.
Evo buscou se apegar ao poder, uma re-reeleição após 14 anos no poder. O MAS reconhece, ao menos em parte, esse erro.
E, para voltar ao poder, precisou fazer esse mea-culpa. Hoje, o discurso de Luis Arce, o presidente virtualmente eleito, é de governar para todos os bolivianos, de união, de diálogo inclusive com a oposição e de pacificação.
Chamou a atenção o fato de, em seu primeiro discurso, ele não citar Evo. Isso não significa necessariamente que o MAS tenha deixado, definitivamente, a asa de seu fundador. Uma parte considerável de sua base reserva ao ex-presidente o altar que a velha esquerda do continente costuma conservar seus líderes. O vice de Arce, por exemplo, David Choquehuanca, segue a cartilha do ex-líder: defende o regime de Nicolás Maduro e ecoa o discurso agressivo de Evo.
Mas para vencer a eleição e superar, pelas regras da democracia, um período transitório sinistro da história boliviana, o MAS precisou se renovar. E aí o partido não cometeu os mesmos erros de outros movimentos de esquerda de vizinhos como o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Chile. Abriu caminho a novas personalidades.
Arce é, em parte, uma dessas novas lideranças, ainda que artífice do chamado milagre econômico boliviano – que surfou na onda do boom das commodities. Ele era coadjuvante de Evo, o homem que centralizou as atenções da política do país na última década e meia.
O ex-ministro da Economia ganhou protagonismo após o exílio do ex-presidente na Argentina. E conseguiu ressignificar o MAS. A ponto de não apenas aglutinar os votos da grande comunidade indígena, amalgamada pelo vice, Choquehuanca, como conquistar a confiança da classe média, o voto da maioria silenciosa que o levou à surpreendente vitória no primeiro turno.
A segunda e grande lição que a Bolívia tem a dar para a América Latina é de democracia. O MAS caiu em meio a um processo suspeito, que lembrou as saídas de cena de alguns presidentes na primeira década do século 21: uma eleição com suspeitas de fraude, um presidente que buscava, a todo custo, se perpetuar no poder, mesmo por meio de fraude, e o uso, por parte da oposição, de subterfúgios da lei para justificar seu afastamento. Evo caiu. Houve meses de transição. A eleição foi justa – e prova disso foi o reconhecimento da derrota, em primeiro turno, pelos adversários, a presidente Jeanine Áñez, e o rival nas urnas, Carlos Mesa, antes mesmo da contagem oficial terminar, com base apenas nas pesquisas de boca de urna.
Além das duas lições bolivianas à América Latina, há também um desafio. A iminente volta de Evo Morales irá colocar à prova a consolidação de democracia. Exilado na Argentina, o ex-presidente avalia o melhor momento do retorno. Em seu país, Evo é investigado em inquéritos por duas situações de estupro e uma de terrorismo. O MAS denuncia os episódios como supostamente processos políticos. Não deixar que o poder conquistado nas urnas interfira na independência do Judiciário é o próximo obstáculo ser superado pela nação vizinha.