As lamentáveis cenas de duas igrejas em chamas em Santiago, no Chile, correram o mundo no final de semana e se tornaram trending topics no Twitter no Brasil,nesta segunda-feira (19), em meio à polarização sobre uma suposta "cristofobia" vigente na sociedade. O termo, citado pelo presidente Jair Bolsonaro em seu discurso na 75º Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro, significa aversão ao cristianismo ou por quem professa a fé cristã.
Antes de chegar à tribuna da ONU, a palavra era utilizada por parlamentares da bancada evangélica no Congresso - nesta segunda-feira (19), foi trazida de volta pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em sua conta no Twitter, para criticar setores de esquerda:
"Ontem a esquerda 'comemorou' um ano do início dos ataques comunistas para desestabilizar o Chile. Para isso, entro outros crimes, destruíram igrejas históricas. O presidente @Jair Bolsonaro está certo ao falar em CRISTOFOBIA. Alguma dúvida de quanto o comunismo odeia a fé Cristã?", escreveu o parlamentar.
O controverso papel político da Igreja Católica no Chile, no entanto, é bem anterior à apropriação do termo "cristofobia" por personalidades ligadas ao governo brasileiro. Remonta à época da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), que se dizia "católico apostólico romano". Documentos dos anos 1970 do Departamento de Estado americano, vazados pelo WikiLeaks, revelaram que o Vaticano, na época do pontificado de Paulo VI, teria minimizado crimes do regime militar chileno, considerando as repressões reportadas como "propaganda comunista". O golpe deflagrado por Pinochet também foi apoiado, inicialmente, pela alta cúpula da Igreja chilena.
Refletindo divisões da época da Guerra Fria, entretanto, o clero chileno não era uniforme. Em Santiago, por exemplo, personalidades da Igreja mudaram de lado tão logo a perseguição a líderes católicos começou. A Igreja constantemente denunciou as violações dos direitos humanos e encabeçou movimentos populares pela "transição democrática", tendo no cardeal Raúl Silva Henríquez uma das vozes mais eloquentes.
No entanto, grupos religiosos conservadores e leigos continuaram a apoiar Pinochet - durante seu regime e depois, na queda de braço, por seu retorno a Santiago, após sua prisão em Londres, em 1998. Em uma amostra dos sinais contraditórios enviados pela Igreja, o papa João Paulo II desatou uma polêmica quando, em abril de 1987, em visita ao Chile, apareceu ao lado do ditador, saudando um grupo de partidários do regime nos balcões do La Moneda ainda marcado por balas do dia do golpe de 11 de setembro de 1973.
Há outros fatos que atraem a ira de manifestantes contra a Igreja no país. O Chile é uma das 25 nações com mais graves abusos sexuais por parte de membros do clero católico - em janeiro deste ano, o Ministério Público chileno informou que existiam 166 inquéritos contra 221 pessoas por supostos casos de pedofilia e abusos sexuais envolvendo religiosos no país. No ano passado, todo o episcopado local apresentou renúncia ao Papa pelos escândalos. A própria passagem de Francisco por Santiago, em 2018, foi tensa porque, inicialmente, ele chamou de "calúnia" as acusações contra o bispo de Osorno, Juan Barros, que, segundo as vítimas, acobertou abusos de padres locais (posteriormente, o Papa pediu perdão no voo de retorno a Roma e convidou três das vítimas a irem ao Vaticano). Barros é um dos que pediu para sair.
A Igreja no Chile, a despeito dos ventos progressistas do pontificado do papa Francisco, é vista como parte do establishment combatido pelos manifestantes - os mais radicais, exigem algo do tipo "que se vayan todos". Por isso, se tornou alvo. Um dos templos incendiados no domingo (18) é uma espécie de símbolo dessas divisões: a Igreja São Francisco de Borja, a primeira destruída, é usada regularmente pelos carabineiros para cerimônias institucionais. A polícia militarizada chilena, uma das mais truculentas da América Latina, está profundamente identificada com a ditadura. Sua atuação na repressão aos protestos atuais é denunciada por organismos como Human Rights Watch e Anistia Internacional, que a acusam de violações aos direitos humanos.
A outra igreja destruída é a de La Asunción, uma das mais antigas da capital. Não foi a primeira vez que templos foram atacados. Em novembro do ano passado, no auge dos protestos, a Igreja de São Francisco de Valdívia, havia sido incendiada por vândalos. Imagens sagradas e a mobília foram destruídas.