Poucos brasileiros conhecem tão bem o que ocorre atrás dos muros do Vaticano quanto o paranaense Silvonei José Protz, 56 anos. Há três décadas, ele é a voz que transmite em português o dia a dia dos papas, o trabalho da Cúria Romana e seu relacionamento com os fiéis. Na Redação da Rádio Vaticano, trabalham oito jornalistas brasileiros, com Silvonei à frente.
Natural de Guarapuava, que ele brinca ser "a cidade mais gaúcha fora do Rio Grande do Sul", o profissional desde jovem trabalha com temas ligados à Igreja Católica, em diferentes emissoras. Também tem um carinho especial pela cultura do Estado.
- Meus pais gostavam de ir ao CTG. Desde criança, tinha bombacha. Quando fui morar em Pato Branco, apresentava vários bailes de debutantes nos CTGs. Virei o sudoeste do Paraná apresentando bailes de CTG - lembra.
Chegou a Roma durante o pontificado de João Paulo II, um dos mais marcantes da história do século 20. Também trabalhou com Bento XVI, antes de sua renúncia, em 2013, e agora experimenta no dia a dia as mudanças tecnológicas e o estilo descontraído de Francisco, que aproximaram o Pontífice do rebanho. Nesta entrevista, ele conta à coluna as curiosidades do trabalho no centro do poder do catolicismo, os encontros com os papas, os impactos do coronavírus no trabalho no Vaticano e as mudanças na comunicação entre a Igreja Católica e os fiéis.
Qual a diferença entre cobrir o pontificado do papa Francisco em relação aos anteriores que o senhor conheceu, João Paulo II e Bento XVI?
A primeira diferença é a própria comunicação, a evolução da tecnologia. Qualquer coisa que o papa faça, diga, hoje todo mundo já sabe, porque o celular está presente de modo muito incisivo, o que não acontecia com João Paulo II e Bento XVI. A mídia acompanhava o Papa mas tínhamos certa reserva. A tecnologia não permitia certas coisas. Recordo o último Ângelus de João Paulo II (oração semanal, aos domingos), quando ele estava no Policlínico Gemelli. Ficou impresso na minha memória, porque ele falou para nós, jornalistas: "Vocês, com as parábolas, levam a minha voz". Parábolas no sentido de parabólicas. Elas eram montadas na frente do Gemelli. Hoje, não existe mais isso. A presença da nova tecnologia na vida do Papa e da Igreja é impressionante. O próprio Santo Padre dá um peso específico a isso também. O paradigma da comunicação se modificou completamente: tínhamos uma mensagem, um veículo, um receptor. Hoje, todo mundo é veículo, mensagem, receptor, comentarista. A produção da informação não é mais feita apenas por nós, profissionais. Todo mundo quer produzir. Daí o grande problema da responsabilidade. Como fazer com que essa responsabilidade chegue às pessoas. Não é fácil. Então, creio que o primeiro destaque dessa realidade do nosso papa Francisco é a própria convivência com toda essa tecnologia.
Na primeira vez que apareceu como Papa no balcão central da basílica vaticana, a introdução sempre de João Paulo II e de Bento XVI era "Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo", e Francisco disse "Boa noite!". Já no primeiro momento podíamos identificar que teríamos uma mudança na maneira de se comunicar.
E com relação à maneira como Francisco lida, nos bastidores, como as pessoas, os funcionários. Como é em relação aos outros papas?
João Paulo II tinha uma proximidade muito grande com os jornalistas. Ele sabia usar muito bem os meios de comunicação. Era uma revolução que tínhamos: a internet ganhando espaço, o virtual ganhava seu espaço. Bento XVI entrou quase como na lei da inércia da comunicação. Antes, a utilização dos meios de comunicação e o contato com os jornalistas era muito mais frio, posso dizer, porque o papa Francisco nos coloca uma revolução, com as entrevistas nos aviões, nas viagens, desde o primeiro encontro que ele teve, como Papa, foi com os jornalistas, para agradecer o trabalho deles. Então, a empatia foi enorme já a partir daquele momento. João Paulo II tinha também aquele encontro com os jornalistas, mas era ainda um degrauzinho mais para cima no sentido de que existia toda aquela palavra que o papa Francisco parece ter arrebentado: o protocolo. Havia todo um protocolo que com esse Papa parece que não funciona bem. Ele não quer protocolo porque ele deseja olhar no rosto das pessoas, conversar. Então, romperam-se certos protocolos também nos meios de comunicação. Basta você pensar: um papa fazendo selfie? Imagina João Paulo II fazendo selfie? Impensável! Esse nosso Papa vive o momento também com a juventude. Um Papa que dá entrevistas, faz livros com entrevista, telefona para emissoras de televisão, liga para as pessoas. É um universo totalmente diferente. A nova tecnologia rompeu com esse protocolo, esse distanciamento, do isolamento que tínhamos do Papa para uma proximidade muito grande.
Esse jeito do papa Francisco causa estranhamento à Cúria Romana, normalmente mais sisuda. Os padres e bispos que acompanham o Papa ficaram de certa forma chocados?
Hoje, creio que não. Nos primeiros momentos, sim. Até o "bom almoço" que o Papa dava no final do Angeles: "O que é isso? O Papa desejando bom almoço?" Tinha gente que não ia almoçar sem o "bom almoço" do Papa. Até hoje, quando termina o Ângelus, ao meio-dia de domingo, ele diz: "Um bom almoço a todos vocês e não esqueçam de rezar por mim". Aquilo chocou. Ele quebrou certos protocolos até linguísticos. Na primeira vez que apareceu como Papa no balcão central da basílica vaticana, a introdução sempre de João Paulo II e de Bento XVI era "Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo", e Francisco disse "Boa noite!". Já no primeiro momento podíamos identificar que teríamos uma mudança na maneira de se comunicar. Bergoglio (o nome de batismo do padre) não inventou nada. Ele trouxe o que ele era. Alguns dizem: "Ah, o Papa está mudando as coisas". Não, ele está fazendo como Papa aquilo que Bergoglio fazia em Buenos Aires. O problema é o choque que vem, com as pessoas mais conservadoras, que gostariam ainda do Papa em uma certa redoma. Certos personagens da cúria acreditavam que o Papa tinha de guardar sua misticidade. Isso fez com que muita gente sofresse em um primeiro momento. Hoje, não. Não se discute mais, mas no primeiro ano do pontificado de Bergoglio, chocou bastante. Depois, viram que não era uma invenção, era o modo de Bergoglio ser Papa. Isso fez com que as pessoas respeitassem.
Ele (o papa Francisco) não quer protocolo porque ele deseja olhar no rosto das pessoas, conversar. Então, romperam-se certos protocolos também nos meios de comunicação.
Os gestos do papa Francisco também são importantes nessa aproximação.
A proximidade que ele deu às pessoas, inclusive que se diziam afastadas da Igreja ou ateias. Tenho amigos que dizem que todo o domingo estão lá ouvindo o Papa. Eu pergunto: "Ué, mas tu não és ateu?" (Risos) "Ateu graças a Deus!" Francisco sempre diz alguma coisa interessante. A comunicação dele se renovou através de uma nova tecnologia também da gestualidade. Ele é um homem do gesto, não é de ficar estático. Ele é muito ativo. A gestualidade entrou no pontificado e ficou porque ele desce do carro, vai à praça. Isso seria impensável até poucos anos atrás. Ele trouxe para a cúria o que ele era em Buenos Aires.
Qual acesso que vocês, jornalistas do Vaticano, têm dentro dos muros do país? Quão próximo vocês ficam do acesso ao Papa?
Temos nossas credenciais. Somos funcionários do Estado da Cidade do Vaticano. O nosso acesso é a todos os lugares. Quando o Papa está presente em alguma audiência, em algum lugar, aí tem um filtro muito maior para evitar o excesso de pessoas. Mas, para você ter uma ideia, na Basílica de São Pedro, temos nossos estúdios no primeiro janelão. Para chegar a esse esse estúdio passamos pela Sala Ducale, pela Sala Régia, na frente da Capela Sistina, diante da Capela Paulina, na Sala das Bênçãos, que são lugares que as pessoas não visitam. São belíssimos, fazem parte do Palácio Pontifício. Nesse sentido, somos privilegiados. Mas vamos lá apenas quando necessitamos para o trabalho porque a sede da Rádio do Vaticano fica fora do Estado da Cidade do Vaticano, no início da Via da Conciliação.
Tenho gosto pela teologia, filosofia, de poder ser um pouco crítico comigo mesmo, do meu modo de caminhar, e procurar entender porque as pessoas estão raciocinando ou refletindo sobre determinado argumento.
No Palácio Pio.
Sim, somos uma zona extraterritorial, como se fosse o Vaticano, mas fora dos 44 hectares que formam a Cidade do Vaticano.
E como fazem para entrar no Vaticano, há muita segurança?
Mostramos a credencial, temos acesso à Porta de Sant'Anna e também pelo Portão de Bronze, aquele que fica no fim da colunata, à direita, onde estão os guardas suíços. Às 20h, fecham-se os portões. O Vaticano é o único país que fecha as portas à noite.
E ocorre de você estar trabalhando e encontrar o papa?
Aconteceu várias vezes. Inclusive indo ao refeitório, chegar lá e ver o Papa à mesa. Não agora, mas no inicio. Inclusive quando foi ao Brasil, pela primeira vez, ele saiu para ver qual jipe iam levar para o país. Falou: "Não quero ir naquele negócio, não. Quero carro aberto". Mas hoje, precisa-se levar em consideração também a idade do papa (83 anos), começa já a ter uma certa dificuldade para caminhar. Nos primeiros dias de pontificado, ele queria ir a pé "para o trabalho", como ele diz. Recordamos que ele mora na casa Santa Marta, atrás da basílica vaticana. Ele queria ir a pé até o Palácio Pontifício. Hoje, não. Vai de carro. A idade dele começa a pesar.
Com João Paulo II e bento XVI acontecia de encontrá-los pelos corredores?
Não. Absolutamente. Era muito mais difícil pelo fato de que eles moravam dentro do Palácio Apostólico. Quem ia até o palácio era para alguma audiência ou algo muito reservado. O Papa não saía como no caso de Francisco, que vai de um lugar a outro para trabalhar.
E você, como uma pessoa que, embora seja leigo, é bastante religioso: como equilibra o lado pessoal e o profissional?
A vida é uma estrada, se você fica parado não chega a lugar nenhum. Você precisa caminhar, às vezes um pouco mais rápido, às um pouco mais devagar, cansa, pode até sentar à beira do caminho. Mas levanta e continua. E essa escolha de vida que a gente faz, no caso da nossa profissão, tem que ter uma consequência. Porque se você abre a boca pra falar e não acredita naquilo é complicado. Pode ser até ser um pouco inconfiante um, dois, três dias, mas no quarto você, conscientemente, não consegue. Portanto, se você quer falar e quer fazer com que a comunicação que abrange a Igreja, o magistério (seja efetiva), se não caminhar nessa estrada, não vou conseguir passar o que quero. Dizem que o médico estuda a vida inteira, o jornalista caminha a vida inteira, com olhos e ouvidos abertos sempre. Porque, se você não tem capacidade de ver o que está acontecendo e ouvir aquilo que estão dizendo, você nunca vai conseguir escrever ou falar. A nossa vida é assim. No meu caso caso, vai pelo gosto também. Tenho gosto pela teologia, filosofia, de poder ser um pouco crítico comigo mesmo, do meu modo de caminhar, e procurar entender porque as pessoas estão raciocinando ou refletindo sobre determinado argumento. Não gosto apenas de beber, gosto de dar minha opinião, e produzir alguma coisa. Quando eu consigo beber daquilo que estou recebendo, consigo então masterizar dentro de mim um pouco do que recebi e criar uma nova mentalidade, uma nova maneira de pensar.
Como a pandemia afeta o trabalho de vocês?
Optei, durante o período do lockdown, que as mães trabalhassem de casa. Por causa das crianças, para facilitar e para evitar excesso de pessoas na nossa redação. Isso foi compartilhado com toda a estrutura da Rádio Vaticano. Hoje, na rádio somos em torno de 300 pessoas, 60 nacionalidades diferentes, temos 16 alfabetos e 40 línguas diferentes.
Quantos brasileiros trabalham com você?
Na minha Redação somos oito jornalistas brasileiros que cuidam da Vatican News em língua portuguesa. Sou o responsável pela língua portuguesa. Temos também uma pequena redação africana, que cuida do português africano. Acho que é um valor muito grande que os países lusófonos africanos podem dar, a experiência de vida, a cultura que vêm da África. O próximo passo será uma proximidade maior com o L'Osservatore Romano (jornal do Vaticano) em língua portuguesa. Creio que em outubro, eles estarão vindo para o Palácio Pio, estarão a poucos metros da minha sala. A ideia é centralizar toda a comunicação do Vaticano: L'Osservatore Romano, Rádio Vaticano, Vatican News, para criar uma sinergia de trabalho para uma produção cada vez mais rápida e eficaz do magistério do papa.