Em carta escrita de próprio punho, assinada na quarta-feira (9), o papa Francisco respondeu a um apelo feito por um grande grupo de padres e bispos brasileiros, entre eles muitos gaúchos, que denunciam atos de racismo em seminários e exigem mudanças, por parte da cúpula da Igreja Católica no país, no modus operandi da escolha dos chefes das dioceses e arquidioceses.
No dia 19 de junho, uma carta assinada por 83 padres dos cleros secular e regular e cinco bispos, grupo autointitulado "Padres e Bispos da Caminhada", foi enviada ao Vaticano. No texto (veja abaixo a íntegra), o grupo afirma que, nos seminários brasileiros, seminaristas negros "têm sido caçoados, inferiorizados, ridicularizados". Também lamenta: "Percorremos calados e engasgados o caminho formativo, temerosos de não sermos aceitos para as sagradas ordens".
No documento, os religiosos solicitam ao Papa que ele "chame nossos Pastores a uma sincera conversão" e mude o modus operandi da Nunciatura Apostólica naquilo que tange a escolha dos bispos. Segundo eles, a cúpula da Igreja no Brasil age sem consultar devidamente as igrejas locais, "nem sequer o bispo a ser substituído por causa da idade, nem o regional da CNBB ou a própria CNBB". Eles afirmam estar "cansados de diplomatas vaidosos e carreiristas, ansiosos por poder".
Na carta, que começa com um trecho do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, eles denunciam ainda o reduzido número de bispos negros no Brasil, que não corresponde à percentagem da população negra brasileira.
A resposta do papa Francisco começa referindo-se ao poema, um dos símbolos da literatura brasileira contra a escravidão, publicado pela primeira vez em 1880: "Obrigado por me escreverem, e começar a carta com os versos de Castro Alves "Navio Negreiro", diz o Pontífice argentino, em espanhol, seu idioma nativo.
Na sequência, ele afirma: "Levo em consideração o que vocês me disseram na carta, os acompanho e estou perto de vocês". O Pontífice promete tratar do tema com o monsenhor cardeal Auellet, prefeito da Congregação para os Bispos: "Entendo o que dizem sobre a nunciatura e o modo de eleger os candidatos ao episcopado. Agora, um novo núncio irá aí, também falarei com ele".
E encerra: "Obrigado pelo testemunho sacerdotal que dão. Rezo por vocês, por favor façam isso por mim".
Tradução da carta do papa Francisco
Vaticano, 09 de setembro de 2020
*Queridos irmãos sacerdotes,
Hoje recebi vossa carta de 19 de junho passado, por meio do Monsenhor Michele Di Tolve.
Obrigado. Obrigado por me escreverem, e começar a carta com os versos de Castro Alves “Navio Negreiro”.
Levo em consideração o que vocês me disseram na carta, os acompanho e estou perto de vocês. Falarei deste assunto com o Cardeal Auellet, prefeito da Congregação para os Bispos.
Entendo o que dizem sobre a nunciatura e o modo de eleger os candidatos ao episcopado. Agora, um novo núncio irá aí, também falarei com ele.
Obrigado pelo testemunho sacerdotal que dão. Rezo por vocês, por favor façam isso por mim.
Que jesus os abençoem, e a Santa Virgem cuide de vocês.
Fraternalmente,
Francisco.*
A íntegra da carta dos padres e bispos, enviada ao Vaticano em 19 de junho
“Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar...” Navio Negreiro, Castro Alves.
Santo Padre,
Os versos acima são um trecho da poesia Navio Negreiro de Castro Alves. Escrita em 1870, na cidade de São Paulo, a poesia relata a situação sofrida pelos africanos vítimas do tráfico de escravos, trazidos em navios negreiros, na sua atormentada travessia, sem retorno, da África para o Brasil.
Vítimas, Santo Padre, o somos, “tutt’ora”, em terra firme.
Os que assinam essa carta somos bispos e padres negros e brancos brasileiros e de outros lugares, Padres da Caminhada, unidos na luta pelos descendentes da Mãe África , homens de coração gentil, alegres por natureza, cheios de vida, enriquecidos pela herança recebida dos nossos ancestrais e pela graça de termos sido chamados, também nós, pelo Cristo, para trabalhar na construção do Reino de Deus. Somos mais de 110 milhões de afro-brasileiros, população só superada pela da Nigéria, na África.
A morte violenta de George Floyd nos Estados Unidos desencadeou mundo afora uma onda de manifestações que puseram em evidência um fato incontornável: VIDAS NEGRAS TEM VALOR!
Em nossa brasilidade, fortemente marcada pela escravidão, sentimos na própria pele que, muitas vezes, esse Valor e riqueza não são reconhecidos.
Indo direto ao ponto, nós padres negros, para respondermos ao chamado de nosso Senhor Jesus Cristo, como operários da Sua Messe, sentimos, em nossa formação, o joelho dos nossos formadores comprimindo o nosso pescoço. Sabemos o que significa o grito: NÃO POSSO RESPIRAR!
Caçoados, inferiorizados, ridicularizados, percorremos calados e engasgados o caminho formativo, temerosos de não sermos aceitos para as sagradas ordens.
No dia 03 de junho, na Audiência Geral, o Senhor disse: “Não podemos tolerar, nem fechar os olhos diante de nenhuma forma de racismo ou de exclusão e pretendemos defender o caráter sagrado da vida humana...”.
Diante dessas palavras, Santo Padre, sentimo-nos encorajados para fazer chegar-lhe a nossa voz.
Sabemos Santo Padre, que o Senhor é um Homem de Deus! Seu coração é HUMANO! E tem buscado colocar a Santa Igreja no caminho da Vida, da Esperança, da Justiça e da Paz!
Tem combatido com coragem o clericalismo e todos os arcaísmos que elitizam e fossilizam a Igreja e a fazem desumana, mundana e distante das maiorias empobrecidas.
É justamente por essas tantas iniciativas, que nos sentimos encorajados a gritar para que, como Pai e Pastor do rebanho, nos veja, nos ouça e venha em nosso auxílio.
Chame nossos Pastores a uma sincera conversão!
Mude o modus operandi da Nunciatura Apostólica naquilo que tange a escolha dos Bispos. A Nunciatura age sem consultar devidamente as Igrejas locais, nem sequer o bispo a ser substituído por causa da idade, nem o Regional da CNBB ou a própria CNBB.
Precisamos de Pastores que estejam afinados com o seu Magistério. Precisamos de Pastores que busquem de fato ter o cheiro das ovelhas e que se preocupem em formar um presbitério fiel ao Evangelho de Jesus: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça...” (Mt 6, 33).
Num País de maioria Negra possamos ter mais Bispos Negros. Por que um padre negro no Brasil não pode ser Bispo? Ou será que a escolha está vinculada à supremacia Branca?
Estamos cansados de diplomatas vaidosos e carreiristas, ansiosos por poder! Isso não nos diferencia em nada do poder estabelecido, que submete a vis condições de vida os homens e mulheres desta terra, principalmente os menos favorecidos, pobres, negros, índios e todos os que vivem e morrem abandonados nas periferias territoriais e existenciais.
Temos muitos padres, teólogos, mestres e doutores negros que correspondem certamente ao desejo do Santo Padre de ter na Igreja pastores capazes de empatia e sinergia com a vida do povo sofrido e fiel, agora duramente atingido pela epidemia do Corvid19.
Fica aqui o nosso grito, Santo Padre, na certeza de sermos ouvidos no nosso clamor!
Com simplicidade e parresia e na adesão sincera ao que nos veio ensinando na Evangelii Gaudium, Laudato Si’, Amoris Laetitia, Querida Amazônia e, sobretudo, por suas atitudes e gestos corajosos, assinam os padres e bispos da caminhada, um grupo numeroso de ministros consagrados, que se apoia mutuamente, para melhor seguir os passos de Jesus no seu amor e cuidado para com os pobres e pequenos, anunciados com vigor profético, tanto na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 14-21), como no Sermão da Montanha (Mt 5, 3-10).