Nos últimos anos, os escândalos envolvendo plataformas digitais foram tantos que hoje pouca gente ainda acredita que o Google seja apenas uma ferramenta de buscas na internet e o Facebook e o Instagram lugares para se ver e curtir fotos de amigos. O lado obscuro das big techs veio a tona a partir de suspeitas de manipulação de algoritmos para influenciar votos em eleições, vazamento de dados privados dos usuários para empresas e consultorias e falta de controle sobre conteúdos falsos (fake news) ou discursos de ódio e material pornográfico.
Quando confrontados com essa realidade, os donos das gigantes do Vale do Silício saíam com evasivas do tipo "não sabemos", "isso não é nossa responsabilidade" ou "somos apenas canal, quem posta as informações são os usuários". A fuga recente de mega-anunciantes, que decidiram retirar seus anúncios de Facebook, Twitter e Instagram desde junho colocou as plataformas de tecnologia no banco dos réus da opinião pública.
As denúncias normalmente partiam de fora para dentro - alimentadas por um comportamento predatório no mercado, que levou a processos nos EUA e na Europa por concorrência desleal e formação de monopólio - ou, no caso de Google e Facebook, o duopólio.
Desde quarta-feira (9), essas empresas ganharam um novo inimigo nessa trajetória que as converteram de heroínas da liberdade, pelo papel que tiveram na Primavera Árabe, a vilãs. O filme documental O Dilema das Redes, do diretor Jeff Orlowski, é perturbador por revelar as intenções que estão por trás da criação de ferramentas aparentemente simples nas redes, como o curtir ou não curtir no Facebook, ou "as reticências" que aparecem quando alguém está respondendo a uma mensagem no Instagram. Quem conta os truques por trás das mágicas que nos fazem ficar presos às telas por horas do nosso dia são os próprios engenheiros, designers e executivos que ajudaram a inventá-las. Esse é o grande mérito da obra, disponível na Netflix, são altos ex-funcionários, como um diretor de monetização de Facebook, uma das primeiras colaboradoras do Instaram, e um vice-presidente de engenharia do Twitter. Eles explicam, um tanto constrangidos, suas estratégias para nos seduzir para gastar tempo e compartilhar informações que possam vender.
— Nos primeiros 50 anos, no Vale do Silício, a indústria fabricava produtos, hardware, softwares, e os vendia para os clientes. Era simples. Nos últimos 10 anos, as maiores empresas do Vale do Silício estão no negócio de vender seus usuários — diz um dos primeiros financiadores do Facebook Roger McNamee, que está no mercado há 35 anos.
Uma das informações perturbadoras é saber que, nos Estados Unidos, pacientes procuram procedimentos cirúrgicos para se parecerem com as fotos deles quando aplicados filtros do Snapchat - patologia que médicos estão chamando de "dismorfia do Snapchat". Ou que o número de adolescentes e pré-adolescentes com depressão e ansiedade aumentou de forma impressionante a partir de 2009, fenômeno que psicólogos atribuem às redes sociais.
O colossal conhecimento que as plataformas detêm de nossos gostos, comportamentos e emoções é ilustrado no filme com seres humanos e de como eles podem manipular algoritmos para que nos sintamos felizes, tristes, com raiva - mas, acima de tudo, que nos mantenhamos conectados (daí o truque de mostrar as reticências enquanto alguém está digitando uma mensagem, a fim de manter a atenção, algo que, segundo especialistas, ativa a ansiedade).
— Falamos sobre isso no Facebook. A ideia de manipular os ajustes conforme o necessário. E falamos sobre esses ajustes com Mark (Zuckerberg) — conta um dos ex-funcionários.
Outro executivo, o inventor do botão curtir na rede social, afirma que a intenção era "espalhar positividade". Mas ninguém previu, pelo menos não na proporção correta, que na verdade haveria mais pessoas tristes por não receberem as curtidas.
Na prática, o filme revela de forma descarnada como nossa privacidade foi roubada enquanto nos distraíamos com "serviços gratuitos" - assim, entre aspas, porque, segundo um ditado clássico no Vale do Silício, nada é de graça: "Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto".
Os impactos na vida privada são o foco do filme, mas também aparecem tintas de como democracias estão sendo abaladas por informações falsas disseminadas nas redes - o Brasil e a eleição do presidente Jair Bolsonaro aparece em um pequeno trecho.
Lá pelas tantas, pode-se pensar que tudo não passa de teoria da conspiração, não fossem pessoas de carne e osso, com conhecimento das entranhas dos monstros, a revelarem seus segredos. No decorrer da narrativa, é visível o incômodo dos entrevistados, que soa quase como um pedido de desculpas. Neste fim de semana, dedique uma hora e 34 minutos ao filme e, se você conseguir ficar durante esse período sem olhar suas redes sociais no smartphone, terá entendido o recado.