O Reino Unido tem testado os limites dos acordo assinado com a União Europeia (UE) para a vida pós-Brexit. O resultado é instabilidade comercial entre o bloco e o país, agora fora da unidade supranacional. A falta de confiança mútua, que vem dos tempos da negociação para o divórcio, aparece na aresta que ficou menos resolvida desde o acordo: a Irlanda do Norte.
Desde o início, esse é um ponto mais espinhoso porque qualquer mudança na região coloca em xeque aspectos históricos importantes – e que já levaram à guerra civil. A Irlanda do Norte é um território britânico e forma, junto com Inglaterra, País de Gales e Escócia, o Reino Unido. Já a República da Irlanda é um país independente.
Como o Reino Unido integrava a UE –ou seja fazia parte do mesmo mercado único e da mesma união aduaneira, a fronteira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda era aberta. Ou seja, bens, serviços, capitais e pessoas podiam circular
quase livremente de um lado para outro. Com o Brexit, tudo pode mudar – Irlanda do Norte e Irlanda podem ficar inclusive sob regimes alfandegários diferentes. Na prática, caminhões vindos da Irlanda do Norte rumo à UE (Irlanda) teriam, por exemplo de parar na fronteira para checagem de documentos e inspeção de produtos. Isso ainda não mudou porque, embora o Brexit já tenha se concretizado em 31 de janeiro – e o Reino Unido tenha deixado a UE –, segue em vigor um período de transição, até 31 de dezembro.
Mas não é só uma questão comercial. A restauração de uma fronteira dura (hard border) ali coloca em risco do Acordo de Paz da Sexta-feira Santa (ou o chamado Tratado de Belfast), assinado em 1998, que colocou fim ao conflito interno entre nacionalistas irlandeses (republicanos e católicos), que defendiam a união das duas irlandas, e unionistas (protestantes), que defendiam que a região continuasse britânica. A guerra matou mais de 3,5 mil pessoas. Uma fronteira ali reaviva tensões.
No acordo de saída, o Reino Unido concordou que a Irlanda do Norte seguiria as regras da UE sobre produtos a fim de se evitar a fronteira física com a Irlanda. Agora, o governo de Boris Johnson fez uma proposta de lei destinada a regular o comércio interno, se não houver acordo comercial entre Londres e Bruxelas. A legislação daria plenos poderes ao governo para mudar o acordo do divórcio – e inclusive a questão da Irlanda do Norte. Ontem, a UE afirmou que a tentativa de mudar o acordo do Brexit prejudica seriamente a confiança que tinha no Reino Unido e destacou que a proposta irá minar o acordo de paz entre as Irlandas. Para tanto, ameaçou o Reino Unido com uma ação legal. Quem pensava que a novela do Brexit havia terminado, enganou-se. Vem aí a segunda temporada.