A rota que o Hércules C-130 da Força Aérea do Chile percorria até desaparecer dos radares a caminho da Antártica é uma das mais perigosas do mundo. Se lá embaixo as correntes marítimas tornam o Estreito de Drake o mais temido pelos navegadores por séculos, no ar a constante mudança nas condições meteorológicas, com ventos que alternam de direção a cada instante, exige planejamento cuidadoso e navegação aérea atenta.
Percorri o trecho entre Punta Arenas e a base de pesquisas Eduardo Frei a bordo de um Hércules do mesmo modelo do chileno, só que da Força Aérea Brasileira (FAB), em janeiro do ano passado, para conhecer as obras da nova estação científica Comandante Ferraz. É um voo habitual para militares de Aeronáutica e Marinha brasileiras e para pesquisadores que desenvolvem trabalhos científicos no continente gelado.
São cerca de três horas de viagem, rápido para quem está acostumado a voar. Mais demorado é o planejamento. Os oficiais da FAB, normalmente os melhores, preparados para voar naquelas condições, acompanham as mudanças dos humores do tempo segundo a segundo por meio de monitores e em contato com a base chilena, única com pista de pouso na Ilha Rei George — onde, além da Eduardo Frei, fica a estação brasileira.
O tempo vira a cada segundo. É comum para quem viaja para a Antártica esperar vários dias para que o voo seja confirmado. E é bastante normal também estarmos todos prontos, com bagagem no hall do hotel, vestidos com roupas polares para suportar o frio, e a decolagem ser cancelada a 30 minutos do embarque. Aconteceu comigo três vezes.
Frustração, claro, é o que sentimos quando isso ocorre. Mas uma das regras que se aprende antes mesmo de se fazer a travessia é que, na Antártica, quem manda é o clima. E respeito às limitações humanas e das máquinas maravilhosas, como o seguro Hércules, é fundamental.
Após a decolagem de Punta Arenas, a aeronave sobrevoa o Estreito de Magalhães até tomar proa de mar aberto. Durante meu voo, pedi para ir até a cabine do Hércules acompanhar o trabalho dos pilotos. Com grandes janelas frontais e laterais, a vista é quase panorâmica. Durante minha travessia, o céu estava bem azul e havia poucas nuvens. Praticamente não houve turbulência. O único inconveniente era o som interno do gigantesco avião, que obriga tripulantes e passageiros a utilizarem protetores nos ouvidos.
Os primeiros sinais da Antártica aparecem depois de duas horas: icebergs que vão ganhando tamanho à medida que nos aproximamos do continente. A paisagem branca toma conta. É no pouso o momento mais delicado. A pista da base Eduardo Frei é de cascalho e a sensação é de que o piloto não conseguirá frear o avião. Em 2014, um Hércules da FAB, de fato, não parou. Ou só parou depois de derrapar e sair da pista. O cargueiro que transportava militares e civis pousou de barriga, o que provocou danos em uma de suas hélices e nos trens de pouso. O impacto não deixou feridos, mas causou vazamento do combustível.
Para quem já percorreu a rota e sabe dos riscos, não há outro sentimento a não ser pessimismo em relação ao desaparecimento da aeronave chilena. Mesmo que o avião possa ter pousado no mar, a sobrevivência é praticamente impossível. Outra regra que se aprende antes de se embarcar para a Antártica é que, em caso de queda na água naquela região, nosso corpo só resistiria por 90 segundos.