A crise diplomática entre Turquia e Estados Unidos, que levou a uma queda vertiginosa da lira, é sintomática da relação ambígua entre o Ocidente e o país de Recep Tayyip Erdogan. O presidente turco — cada vez mais com cara de ditador — atribuiu a desvalorização da moeda do país a um complô americano. Nesta segunda-feira, ele acusou a Casa Branca de querer esfaquear a Turquia pelas costas.
– De uma parte, vocês estão conosco na Otan e, de outra parte, tentam esfaquear seu aliado estratégico pelas costas. É aceitável algo assim? – questionou Erdogan durante discurso em Ancara.
– Por um lado, dizem ser nosso sócio estratégico e, por outro, dão um tiro em nosso pé.
Aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), EUA e Turquia atravessam uma crise ligada especialmente à detenção pelo governo de Erdogan de um pastor americano, Andrew Brunson, acusado de espionagem e terrorismo. Os americanos exigem sua libertação e impuseram sanções contra dois ministros turcos. Erdogan endureceu. As tensões se aceleraram com a queda da lira turca, que perdeu 40% de seu valor durante o ano.
Ao mesmo tempo em que EUA e Europa guardam desconfiança do regime de Erdogan desde o suposto autogolpe que justificou a ditadura disfarçada, o Ocidente precisa dele e da posição geográfica que o país ocupa. A Turquia é estratégica por ser entreposto entre dois mundos, entre Ásia e Europa. Além disso, no país, fica a principal base da Otan na região: Incirlik. De lá, partem muitos dos aviões que atacam posições do Estado Islâmico (EI). Com fronteiras com o Iraque e a Síria, o país é também uma espécie de tampão para evitar a entrada de terroristas no continente europeu e controlar as ondas migratórias de refugiados.
Os turcos também têm suas razões para observar os movimentos americanos com ressalvas. No norte do Iraque, os EUA apoiaram os curdos, inimigos do regime turco, ao defenestrar o Estado Islâmico da região. Dentro da Turquia, os curdos, maior povo sem pátria do mundo, são tratados como terroristas pelo governo de Erdogan porque reivindicam parte do território como área de seu futuro país. A vitória dos curdos contra os extremistas do outro lado da fronteira deu força à etnia no lado turco.
Nos últimos meses, a Turquia reforçou a fronteira com a Síria, que, além da guerra particular entre o governo de Bashar al-Assad e a oposição rebelde, tornou-se uma espécie de ímã de terroristas do Estado Islâmico que fugiram do Iraque. Volta e meia, tanques turcos invadem o território sírio em uma tentativa de criar uma espécie de colchão de proteção à entrada de extremistas no país.
Erdogan não está de todo errado ao acusar os EUA de jogo duplo na relação com seu governo. Ele próprio é também mestre nessa prática. Americanos e europeus sabem que não serve com Erdogan a lógica do canhão, a diplomacia adotada por Donald Trump na região. A estabilidade econômica e política do continente, a sobrevivência da Otan e a própria guerra ao Estado Islâmico estão sob risco.